quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

8EF: Texto teatral escrito/2

O anúncio feito a Maria

PAUL CLAUDEL



PRIMEIRO ATO


PRIMEIRA CENA


Grande mesa ao centro, onde a Mãe passa a ferro uma roupa. Anne Vercors, sentado de costas para a mesa, tem nos joelhos um livro.


ANNE VERCORS — Tu julgas sem dúvida agradável estar a gente metido entre as tuas cruzes e rodelas!
A MÃE — Zomba de mim, grade zombeteiro, como se fosses assim tão forte nas contas! É o roto... o roto... Como é mesmo que se diz?
ANNE VERCORS — É o roto que se ri do rasgado.
A MÃE — Isto mesmo. O roto...


Salpica a roupa de água, molhando as pontas dos dedos numa vasilha ao lado.


É o roto que se ri do rasgado.
ANNE VERCORS — O roto... O roto... E que estás aí ruminando?
A MÃE — Bem o quiseras saber, meu finório... É segredo.
ANNE VERCORS — Pode bem ser que eu também tenha um...


Ele se levantou, e a contempla.


A MÃE, sem olhá-lo — Por que me olhas desse jeito?
ANNE VERCORS — Ó mulher! Eis depois que nos desposamos
Com o anel em forma de O, um mês,
Um mês que de anos fosse feito...
Como a árvore que dá sombra só,
Muito tempo permaneceste vazia.
Mas como hoje, um dia,
Nós nos contemplamos mutuamente no meio da vida.
E eu vi, Elizabeth, as primeiras rugas na tua fronte e em torno dos teus olhos.
E como no dia do nosso casamento,
Não na alegria, mas no sofrimento,
E na piedade, e na ternura, e na fidelidade, nos unimos.
E eis entre nós Violaine,
Esse doce narciso.
E depois a segunda nos nasce,
A negra Mara. Outra moça e não um rapaz!


Pausa


Agora, vamos, dize o que tens a dizer, porque eu sei bem que o tens,
Quando te pões a falar de qualquer coisa, sem olhar as pessoas.
A MÃE — Tu bem sabes que não se pode falar contigo; tu nunca estás. A não ser quando consigo apanhar-te de jeito para pregar-te um botão.
Mas não prestas atenção. Sempre como um cão a rosnar e a espreitar o que possa acontecer.
Os homens não compreendem nada!
ANNE VERCORS — As meninas, ei-las agora grandes.
A MÃE — Não tão grandes assim!
ANNE VERCORS — Com quem iremos casá-las?
A MÃE — Temos tempo para pensar.
ANNE VERCORS — Ó falsidade de mulher!
Quando é que pensaste uma coisa
Sem dizer primeiro o contrário? Eu te conheço.
A MÃE — Então não digo mais nada.
ANNE VERCORS — Jacques Hury.
A MÃE — Que tem ele?
ANNE VERCORS — Que tem? Eu lhe darei Violaine.
Ficará no lugar do filho que eu não tive. É um homem reto e corajoso.
Eu o conheço desde pequeno, quando sua mãe no-lo deu. Fui eu que lhe ensinei tudo.
As sementes, os bichos, as pessoas, as armas, as ferramentas, os vizinhos, os superiores, os costumes, — Deus, —
O tempo que vai fazer, as manhas da nossa terra,
O hábito de refletir em vez de falar.
Vi-o tornar-se homem enquanto me olhava.
E não era desses que contradizem, mas que refletem, como a terra que aceita toda semente.
O que é falso morre, sem criar raízes.
E não se pode dizer que ele crê no que é verdade; mas a verdade cresce nele, achando alimento.
A MÃE — Resta saber se ao menos eles se gostam...
ANNE VERCORS —  Violaine,
Ela fará o que eu disser.
E quanto a ele, eu sei que a ama, e tu sabes também.
No entanto o tolo não tem coragem de falar-me. Mas ele a terá, se quiser. Ele a terá e está acabado!
A MÃE — Bem. Bem.
Está direito. Está certo.
ANNE VERCORS — E é só? Não tens outra coisa a dizer?
A MÃE — Que haveria de ser?
ANNE  VERCORS — Bom. Vou chamá-lo aqui.
A MÃE — Chamá-lo?... Chamá-lo?...
ANNE VERCORS — É preciso que tudo seja arranjado depressa. Terei uma coisa a dizer-te...
A MÃE —  Uma coisa? Uma coisa a dizer-me? Um segredo? Anne, escuta-me um pouco...
Eu tenho medo...
ANNE VERCORS — E então?
A MÃE — Mara
Dormia no meu quarto este inverno, quando estiveste doente, e a gente conversava na cama.
É um bravo rapaz decerto, e eu o amo quase como um filho.
Não tem dinheiro, é verdade, mas é trabalhador, é de boa família.
Nós poderíamos dar-lhes
Nossa granja do Meio-Almude com as terras de baixo distantes demais para nós.
— Eu queria também falar-te dele.
ANNE VERCORS — E então?
A MÃE — Então...
Está claro que Violaine é a mais velha.
ANNE VERCORS — E daí?
A MÃE — Daí... Estás tão certo assim que ele a ame? — Nosso compadre, Mestre Pedro
(Por que ficou ele esta vez afastado sem falar com ninguém?)
Tu o viste, o ano passado, quando veio.
Com que olhar a fitava enquanto nos servia. — É verdade que não tem terra alguma, mas como ganha dinheiro!
— E ela, enquanto ele falava,
Com que olhos abertos o escutava,
Esquecendo de servir a bebida, e fazendo com que eu ralhasse!
— E Mara, tu a conheces! Tu sabes como ela é teimosa!
Se lhe deu na telha casar com Jacques, ah! ah! é dura como ferro!
Eu... eu não sei... Talvez fosse melhor...
ANNE VERCORS — Que tolices são essas?
A MÃE — Está bem, está bem. Estávamos conversando... Não vale a pena zangar-se!
ANNE VERCORS — Eu quero que seja assim.
Jacques desposará Violaine.
A MÃE — Está bem, minha gente: ele a desposará!
ANNE VERCORS — E agora, minha velha, tenho outra coisa a dizer-te, querida! Eu parto.
A MÃE — Tu partes? Tu partes?
Que estás dizendo, meu velho? Tu partes?
ANNE VERCORS — E é por isso que é preciso que Jacques despose Violaine sem demora e seja agora o homem em meu lugar.
 A MÃE — Tu partes, Senhor! E para quê?
 E para onde, então?
ANNE VERCORS, apontando vagamente o sul — Naquela direção.
A MÃE — Vais a Castelo?
ANNE VERCORS — Não. Mais longe.
A MÃE, baixando a voz — Vais procurar o outro Rei?
ANNE VERCORS — O Rei dos Reis, na Terra Santa.
A MÃE — Virgem Mãe! Meu Jesus!


Senta-se lentamente.


Será que a França já não te serve?
ANNE VERCORS — Há dor demais na França.
A MÃE — Mas estamos tão bem aqui e ninguém toca em Rheims.
ANNE VERCORS — É isto.
A MÃE — Isto o quê?
ANNE VERCORS — Somos felizes demais.
E os outros não.
A MÃE — Anne, não temos culpa.
ANNE VERCORS — Nem eles...
A MÃE — Eu não sei. Eu só sei que estás aqui e que eu tenho de ti duas filhas!
ANNE VERCORS — Mas tu não vês ao menos que tudo está fora do lugar, e cada um procura perdidamente o seu?
Essa fumaça, que às vezes se vê ao longe, não é palha queimando.
De todos os lados os pobres chegam em bando.
Não há mais Rei na França, como foi predito pelo Profeta.
A MÃE — É aquela passagem que nos leste outro dia?
ANNE VERCORS — No lugar do Rei temos dois meninos.
Um, o inglês, na sua ilha.
E o outro, tão pequenino, que não mais o vemos entre as canas do Loire.
Em lugar do Papa, temos três; e em vez de Roma não sei que concílio na Suíça.
Tudo entra em luta e em movimento,
Não sendo mais mantido pelo peso supremo.
A MÃE — E tu... Queres também ir embora?
ANNE VERCORS — Não posso mais ficar.
A MÃE — Anne, será que eu te dei algum desgosto?
ANNE VERCORS — Não, minha querida.
A MÃE — Tu me abandonas na velhice.
ANNE VERCORS — Manda-me embora, tu mesma.
A MÃE — Não me amas mais. Não és feliz comigo.
ANNE VERCORS — Estou cansado de ser feliz.
A MÃE — Não desprezes o dom que Deus de deu.
ANNE VERCORS — Louvado seja, que me cumulou de bens!
Eis trinta anos que mantenho de meu pai essa herança sagrada, e que Deus faz chover no meu solo.
E há dez anos que nem uma hora sequer do meu trabalho
Não foi quatro vezes paga.
Como se ele não tivesse querido usar balança comigo e deixar conta alguma aberta.
Tudo perece, e eu sou poupado.
De modo que aparecerei diante d’Ele vazio e sem título, entre os que houver recompensado.
A MÃE — Um coração reconhecido é bastante.
ANNE VERCORS — Mas eu, eu não estou ainda saciado dos seus bens.
Porque recebi alguns, estes aqui, deixaria acaso os maiores?
A MÃE — Não entendo o que dizes...
ANNE VERCORS — Qual dos vasos, o cheio ou o vazio, recebe mais?
Qual tem mais precisão de água, a cisterna ou a fonte?
A MÃE — A nossa quase secou este verão.
ANNE VERCORS — O mal do mundo foi que cada um quis gozar dos seus bens como se houvessem sido criados para ele.
A MÃE — Tua obrigação é estar aqui.
ANNE VERCORS — A não ser que me dispenses dela.
A MÃE — Nunca te deixarei!
ANNE VERCORS — Bem vês que a parte que eu tinha a fazer está feita.
As duas meninas estão criadas e Jacques está aí para ocupar meu lugar.
A MÃE — Que será que te chama para longe?
ANNE VERCORS, sorrindo — Um anjo com uma trombeta.
A MÃE — Qual?
ANNE VERCORS — A trombeta sem som que todos ouvem...
A MÃE — Jerusalém é tão longe!
ANNE VERCORS — Mais longe é o Paraíso.
A MÃE — Deus, no tabernáculo, está conosco aqui mesmo.
ANNE VERCORS — Mas não está o buraco.
A MÃE — Que  buraco?
ANNE VERCORS — O que fez a cruz ao ser plantada.
Eis, agora, que ela atrai tudo a si.
Lá está o ponto que não pode ser desmanchado, o nó que nunca desata.
A MÃE — Que adianta um peregrino só?
ANNE VERCORS — Eu não serei sozinho!
Ei-los todos em marcha comigo, uns me empurrando, outros me arrastando, outros me segurando pela mão.
A MÃE — Quem sabe não iremos precisar de ti?
ANNE VERCORS — Quem sabe não precisam de mim noutro lugar?
Tudo está em movimento. Quem sabe não perturbo a ordem de Deus, permanecendo aqui,
Onde a precisão de mim acabou?
A MÃE — Eu sei que és um homem inflexível.
ANNE VERCORS, ternamente, mudando de voz — Tu és sempre jovem e bela para mim e o amor que eu tenho pela minha Elizabeth de cabelos negros é grande.
A MÃE — Meus cabelos estão brancos!
ANNE VERCORS — Dize o sim, Elizabeth...
A MÃE — Anne, durante trinta anos não me deixaste... Que vai ser de mim sem meu chefe e companheiro?
ANNE VERCORS — ...O sim que nos separa, agora, baixinho,
Tão cheio como aquele que outrora fez de nós dois um só.


Silêncio.


A MÃE, baixinho — Sim, Anne.
ANNE VERCORS — Paciência, meu amor.
Breve estarei de volta.
Não podes acreditar em mim um pouco, sem que eu esteja aqui?
Muito cedo, outra separação há de vir.
— Vamos. Põe almoço de dois dias num saco. Eu preciso partir.
A MÃE — O quê? Hoje? Hoje mesmo?
ANNE VERCORS — Hoje mesmo. Adeus, Elizabeth!


Ele põe-lhe a mão na cabeça. Ela toma-lhe a mão e a beija.


ANNE VERCORS — Vou dizer a todos que venham. Homens, mulheres, crianças. Vou tocar o sino. É preciso que todos estejam aqui. Tenho alguma coisa a dizer.


Sai.




SEGUNDA CENA


Durante a cena ouve-se tocar o sino, que convoca o pessoal a casa.
Mara entra.


MARA, à Mãe — Vai. Dize-lhe que ela não se case com ele.
A MÃE — Mara, que é isto? Estavas aqui?
MARA — Vai. Dize-lhe que ela não se case com ele.
A MÃE — Ela, quem? Ele, quem? Quem te disse que eles vão casar?
MARA — Estava aqui. Ouvi tudo.
A MÃE — Pois bem, minha filha! Teu pai o quer.
Bem viste que fiz tudo o que pude e que ele nunca muda de ideia!
MARA — Vai dizer-lhe que ela não se case com ele, ou do contrário me mato!
A MÃE — Mara!
MARA — Vou enforcar-me no telheiro de lenha,
Onde acharam o gato enforcado.
A MÃE — Mara, como és má!
MARA — Ela quer tomá-lo de mim.
Ela quer tomá-lo agora!
Eu é que devia ser sua mulher, e não ela.
Ela sabe bem que sou eu.
A MÃE — É a mais velha.
MARA — E que tem isso?
A MÃE — Teu pai o quer.
MARA — Que me importa!
A MÃE — Jacques Hury a ama.
MARA — É mentira. Eu sei muito bem que não gostais de mim!
Ela foi sempre a predileta. Ah! quando falais de vossa Violaine é tudo açúcar.
É como se estivésseis chupando uma cereja, no momento de cuspir o caroço.
Mas, Mara amarga! Ela é dura como o ferro, e ácida como a casca.
E como se vossa Violaine já não fosse bastante bela,
Eis que vai ganhar também Combernon!
Que sabe ela fazer, a pateta? Qual das duas faz andar a carroça?
Ela se julga uma Santa Onzemilvirgens!
Mas eu sou Mara Vercors, que não gosta de injustiça e presunção.
Mara, que diz a verdade, e que exaspera as pessoas com isso!
Que elas se exasperem, bem me importa. Não há uma só que possa comigo!
Tudo comigo anda direito.
E eis que tudo é para ela, e nada para mim.
A MÃE — Tu terás também a tua parte.
MARA — Imaginem! As terras secas do alto, que precisam cinco bois para lavrar!
A MÃE — Mas produzem bastante...
MARA — Muito.
Cauda-de-raposa, dente-de-cão, sene e verbasco...
Poderei ao menos fazer chá...
A MÃE — Má! Tu sabes que não é verdade o que dizes!
Tu bem sabes que ninguém deseja prejudicar-te!
Mas tu, sim, é que foste sempre ruim.
Quando eras pequena gritavas sem que te batessem.
Nega-o, se podes, perversa!
Não é ela então a mais velha? Que tens tu a censurar-lhe, invejosa?
E a coitada sempre faz o que desejas.
Pois bem: ela se casará primeiro, e tu te casarás, tu também, mas depois!
Afinal, já não adianta mais discutir, pois o pai vai embora.
Que tristeza, meu Deus!
Já foi falar com Violaine e vai em busca de Jacques.
MARA — É mesmo. Vai logo. Vai já.
A MÃE — Onde?
MARA — Mãe, não sejas tola. Tu sabes bem que sou eu. Dize-lhe de uma vez que ela não se case com ele!
A MÃE — Não direi coisa alguma!
MARA — Repete-lhe apenas o que eu disse.
Que eu me matarei. Ouviste?


Ela a olha fixamente.


A MÃE — Ah!
MARA — Julgas que não?
A MÃE — Oh! Sim, meu Deus!
MARA — Vai então!
A MÃE — Ó
Cabeça!
MARA — Tu não terás culpa alguma.
Repete apenas o que eu disse.
A MÃE — E ele, quem te garante que vai querer casar-se contigo?
MARA — Não vai querer, é claro.
A MÃE — Pois bem...
MARA — Pois bem o quê?
A MÃE — Não penses que vou mandar Violaine fazer o que queres! Ao contrário!
Repetirei somente o que disseste, eu juro.
E ela não será tola de ceder.


Sai.




TERCEIRA CENA


Entram Anne Vercors e Jacques Hury. Este último empurra um homem de mau aspecto, mãos atadas às costas. Seguem-no dois servos: um carrega um feixe de lenha verde e outro, mais atrás, segura um cão pela coleira.


ANNE VERCORS, parando — Será possível?
JACQUES HURY — Isto mesmo! Dessa vez o apanhei em flagrante, de foice na mão!
Vim devagarinho por detrás e, de repente, zás!
Atirei-me sobre ele com todo o apetite,
Como a gente se atira sobre a lebre no tempo da colheita.
E vinte carvalhos novos, que tanto amavas, ao lado dele empilhados!
ANNE VERCORS — Por que não veio falar comigo? Eu lhe daria a lenha que precisa.
JACQUES HURY — A lenha que precisa é o cabo do meu chicote!
Não é por precisar, é por maldade, ruindade pura.
É dessa gente perversa que está sempre fazendo mal a alguém, à toa, simplesmente por gosto.
Mas este aí, vou cortar-lhe a orelha com a minha faca pequena!
ANNE VERCORS — Não.
JACQUES HURY — Deixa que o amarre pelos pulsos ao arado, diante da Porta Grande.
Com o rosto virado para os dentes, e o cão para o vigiar.
ANNE VERCORS — Também não.
JACQUES HURY — Que devo então fazer?
ANNE VERCORS — Mandá-lo de novo para casa.
JACQUES HURY — Com lenha?
ANNE VERCORS — E outro bocado que lhe darás. Vai buscá-lo depressa.
JACQUES HURY — Pai, isto não está direito.
ANNE VERCORS, piscando o olho — Tu poderás amarrá-lo entre os dois feixes para que não venha a perdê-los.
E isso o ajudará a atravessar o riacho de novo...
JACQUES HURY, soltando uma risada — Ah, senhor! Só tu mesmo terias uma ideia dessas!


Amarram a lenha às costas e ao peito do homem. Forma-se um simulacro de cortejo. Um dos servos vai à frente fingindo tocar trombeta. Os outros, atrás. O cão salta e late. Saem.


ANNE VERCORS — Eis que eu fiz justiça.
JACQUES HURY — E bem feita!
ANNE VERCORS — E és tu, Jacques, que a farás agora em meu lugar.
JACQUES HURY — Senhor, que estás a dizer?
ANNE VERCORS — Que és tu, Jacques, que a farás em meu lugar.
Foste tu que escolhi. És tu que ponho agora em meu lugar aqui.
JACQUES HURY — Entendes, ó Mãe, o que ele diz? Que está ele dizendo? Que está ele dizendo?
A MÃE, gritando com toda a força — Vai-se embora para a Palestina, para Jerusalém.
ANNE VERCORS — É certo. Parto agora mesmo.
JACQUES HURY — Tu partes? Jerusalém? Que quer dizer isso, meu Deus?
ANNE VERCORS — Isso mesmo que ouviste.
JACQUES HURY — Como? No momento do maior trabalho tu nos deixas?
ANNE VERCORS — Não é necessário em Combernon duas cabeças.
JACQUES HURY — Meu pai, eu não sou mais que teu filho.
ANNE VERCORS — Tu serás o pai em meu lugar.
JACQUES HURY — Não, não te entendo.
ANNE VERCORS — Vou-me embora. Recebe Combernon.
Como eu o recebi de meu pai, e este do seu.
E Radulfo, o Franco, o primeiro de nossa linhagem, de São Remígio de Rheims.
Que, por sua vez, de Genoveva de Paris
Recebera esta terra então pagã, horrível, só de árvores  bravas e espinhos venenosos.
Livre é portanto esta terra que recebemos do céu, pagando o dízimo, lá no alto, em Monsanvierge, a este voo de pombas arrulhantes um instante pousado.
Jamais aqui os animais adoecem; jamais os seios e as cisternas secam; o grão é duro como o ouro; rija, como o ferro, a palha.
E contra os assaltantes temos as armas, as muralhas de Combernon, e o Rei, nosso vizinho.
Recolhe a messe que eu semeei, assim como eu outrora enchi de terra os sulcos por meu pai traçados.
Ó bela profissão do agricultor, na qual o sol é nosso boi luzidio, nosso banqueiro a chuva, e Deus, hora por hora, nosso companheiro de trabalho, fazendo cada um o mais que pode!
Os outros esperam os seus bens dos homens, mas nós do próprio céu recebemos os nossos!
Cem por um, a espiga pelo grão, a árvore pelo galho.
Pois tal é a justiça de Deus conosco, tal a medida em que nos paga.
Empunha o cabo da charrua em meu lugar, liberta a terra desse pão que o próprio Deus desejou.
Dá de comer a toda a criatura, aos homens e aos animais, aos espíritos e aos corpos, e às almas, às almas imortais.
Vós outros, mulheres e servos, olhai. Eis aqui o filho de minha escolha, Jacques Hury.
Vou-me embora, mas ele fica em meu lugar. Obedecei-lhe.
JACQUES HURY — Seja feita, Pai, a tua vontade.
ANNE VERCORS — Violaine!
Minha filha nascida primeiro em lugar do filho que eu não tive!
Herdeira do nome pelo qual eu vou ser dado a outrem!
Quando tiveres um marido, não desprezes o amor de teu pai.
Pois ainda que quisesses, jamais lhe poderias pagar tudo o que te deu.
Tudo é igual entre o esposo e a esposa; o que um ignora do outro é aceito na fé.
Eis a mútua religião, eis a servidão pela qual o seio da mulher se enche de leite.
Mas o pai vê os filhos fora dele, e conhece o que dentro dele havia estado.
Conhece, minha filha, o teu Pai!
O amor do Pai
Não pede paga, e o filho não precisa ganhá-lo ou merecê-lo;
Como estava com ele antes do princípio, continua sendo seu bem,
Sua herança, seu recurso, seu título, sua honra e justiça!
Minha alma não se havia separado dessa outra por ela comunicada.
— E agora... a hora, a hora veio de nos separarmos.
VIOLAINE — Pai, não digas essa coisa cruel!
ANNE VERCORS — Jacques, tu és o homem que eu prefiro. Toma Violaine. Eu te dou a minha filha. Tira-lhe o meu nome.
Ama Violaine, porque é límpida como o ouro.
Ama Violaine, todos os dias de tua vida, como o pão que jamais nos enfara.
Ela é simples e obediente, ela é sensível e secreta.
Jamais lhe dês um desgosto. Cuida de Violaine com carinho.
Tudo aqui é teu, exceto a parte de Mara, de acordo com o que hei disposto.
JACQUES HURY — O que, meu pai? A tua filha, os teus bens...
ANNE VERCORS — Eu te dou tudo junto, enquanto são meus.
JACQUES HURY — Mas, quem sabe se ela me quer ainda?
ANNE VERCORS — Quem o há de saber?


Ela olha Jacques e, sem mover os lábios, diz que sim.


JACQUES HURY — Tu me aceitas, Violaine?
VIOLAINE — O pai o quer.
JACQUES HURY — E tu queres também?
VIOLAINE — Eu também quero.
JACQUES HURY — Violaine!
Como irei arranjar-me contigo?
VIOLAINE — Pensa enquanto é tempo ainda!
JACQUES HURY — Por Deus que eu te tomo, e não te largo mais!


Ele a toma pelas duas mãos.


Tenho-te bem segura, a mão e o braço,
 e tudo o que acompanha o braço.
Pais, vossa filha não mais vos pertence!
É minha só.
ANNE VERCORS — Pois bem. Estão casados, está pronto! Que dizes tu, ó Mãe?
A MÃE — Estou contente!


Ela chora.


ANNE VERCORS — Ela chora, coitada!
Seja. Eis que nos tomam nossas filhas e ficamos sozinhos.
A velha que se alimenta de um bocadinho de leite e um pedacinho de bolo.
E o velho de orelha cheia de pelos brancos como um miolo de alcachofra.
— Prepare-se o vestido de casamento!
— Filhos, não estarei presente às vossas bodas.
VIOLAINE — Pai!
A MÃE — Anne!
ANNE VERCORS — Vou partir neste instante.
VIOLAINE — Que é isso, Pai? Antes que estejamos casados?
ANNE VERCORS — É preciso. A mãe te explicará.


Entra Mara.


A MÃE — Quanto tempo vais ficar lá longe?
ANNE VERCORS — Não sei. Talvez pouco.
Em breve estarei de volta.


Silêncio.


VOZ DE CRIANÇA AO LONGE:
Compadre oriolo,
Que come a casca e deixa o miolo!


ANNE VERCORS — Na árvore de ouro e rosa o oriolo canta.
Que diz ele? Que a chuva desta noite foi como ouro para a terra.
Após os longos dias de calor... Que diz ele? Diz que é bom trabalhar.
Que diz ainda? Que o tempo está bom, que Deus é grande e que faltam ainda duas horas para que o meio-dia chegue!
Que diz ainda o passarinho? Que é hora
Do velho ir embora
E deixar os outros trabalharem...
— Jacques, deixo-te o que é meu. Protege estas mulheres.
JACQUES HURY — Como, tu partes?
ANNE VERCORS —Parece que ele não estava escutando...
JACQUES HURY — Mas já, agora?
ANNE VERCORS — Sim. Chegou a hora.
A MÃE — Tu não vais partir sem comer primeiro!


Durante esse tempo as criadas preparam a enorme mesa para a refeição do pessoal.


ANNE VERCORS, a uma criada — Olá, meu saco e meu chapéu!
Trazei-me sapatos e capa.
Não tenho tempo de almoçar convosco!
A MÃE — Anne, quanto tempo vais ficar por lá? Um ano? Dois? Mais de dois?
ANNE VERCORS — Um ano. Dois. Sim, isto mesmo.
Pela primeira vez te deixo, ó casa!
Combernon, sagrada habitação,
Vela sobre todas as coisas! Jacques estará em meu lugar.
Eis a lareira onde sempre há fogo, eis a mesa em que alimento o meu povo.
Tomai, todos, lugar. Antes de partir, vos parto o pão.


Toma o seu lugar na ponta da longa mesa, tendo a Mãe à direita. Todos os servos e servas estão de pé, cada um no lugar costumado. Ele toma o pão, faz-lhe uma cruz em cima, com a faca, corta-o, e o faz distribuir por Violaine e Mara. Guarda para si o último pedaço.
Depois, volta-se solenemente para a Mãe e abre os braços para ela.


Adeus, Elizabeth!
A MÃE, chorando, abraçada a ele — Tu não me verás de novo!
ANNE VERCORS, mais baixo ainda — Adeus, Elizabeth!


Volta-se para Mara e a fita gravemente, longamente, e estende-lhe a mão em seguida.


Adeus, Mara! Eu te peço que sejas boa!
MARA, beijando-lhe a mão — Adeus, meu pai!


Silêncio. Anne Vercors, de pé, olha para a frente, como se não visse a seu lado Violaine. Por fim, volta-se um pouco para ela, que lhe passa os braços em torno do pescoço, escondendo os soluços no seu peito.


ANNE VERCORS, como se não a visse, aos servidores: A vós todos, adeus!
Sempre fui justo para convosco. Quem disser o contrário está mentindo.
Não sou como os outros patrões. Elogio quando é preciso; quando é preciso, castigo.
Agora, que vou partir, procedei como se aqui estivesse.
Voltarei quando menos esperardes.


Estende a mão a todos.


Tragam-me o cavalo!


Silêncio.


Inclinando-se sobre Violaine, sempre abraçada a ele.


Que foi, meu bem?
Trocaste um pai por um marido.
VIOLAINE — Pobre de mim, meu Pai!


Ele lhe desfaz o abraço docemente.


A MÃE — Dize quando voltas.
ANNE VERCORS — Não o posso.
Será talvez de manhã. Talvez ao meio-dia, quando estiverdes comendo.
Talvez à noite, acordando, ouvireis na estrada o meu passo...
Adeus!


Ele sai.


Todos parecem petrificados. Jacques Hury toma a mão de Violaine. Ouve-se, ao longe, o cuco.

(extraído de: CLAUDEL, Paul. O anúncio feito a Maria: versão definitiva para a cena. Tradução de Dom Marcos Barbosa, O.S.B. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1968. primeiro ato, p. 39-66)


1º bimestre, atividade 3
24/2/2012

Faça um resumo dos acontecimentos apresentados em cada cena, indicando quem participa da cena, o que parecia ser a expectativa natural da história e o que ocorre para quebrar essa expectativa. Se quiser, pode usar pequenos trechos das falas, entre aspas, para exemplificar. Escreva de 5 a 10 linhas para cada cena.

Formato: fonte Times New Roman, corpo 12, entrelinha 1,5.
Salve o arquivo como 8EF_103_Seu nome e envie-o anexado por e-mail ao professor, com o assunto 8EF.

Nenhum comentário:

Postar um comentário