quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

1EM: Texto narrativo/3

Gustavo Corção

Estava deitado. Lá fora, longe, nas ruas mais movimentadas, o carnaval enche a noite de um som vago, grosso, rouco, que não sei se é rugido de perversidade ou gemido de dor. Apaguei a luz. Invadia-me um torpor que tinha mais de anestesia que de sono. Quando aumentava o torpor, mesmo estando eu de olhos abertos, parecia-me que o ruído se aproximava de mim. É no meu ouvido, quase dentro de mim, que o Rio de Janeiro ronca o seu delírio carnavalesco. Reajo, e logo o ruído volta a se colocar no espaço, ali, acolá, mais longe, mais perto, diferenciado, difuso.

Pouco depois recomeça o torpor, e o ruído se aperta de novo, comprime-se, e novamente passam bondes dentro de mim, bandos ruidosos, cuícas, pandeiros, tudo dentro de mim.

Há certas noites espessas que também destroem o espaço, aproximando, fundindo as coisas num bloco apertado e próximo. O céu desce e encosta na terra; as montanhas se deslocam e viram paredes; o universo inteiro parece um calabouço exíguo. Ao contrário, e sobretudo depois de uma noite assim, não há nada mais espaçoso e diáfano do que a madrugada. O céu se  levanta com delicadezas de véu e pluma; o morro deixa de ser assombração, voltando para sua aprazível distância, e nascem casas brancas, pequeninas, e a gente respira à vontade, porque o universo cresceu.

Ora, o que eu sentia, esticado na cama, sem coragem de mover-me, era uma noite pesada, que trazia tudo para cima de mim, para dentro de mim. O que estará acontecendo? Será hoje? Deveria resistir, acender a luz, arrumar as flores, beber um copo d'água? Deverei chamar alguém?

Volta o torpor... No limiar do sono ou do desmaio, mas ainda consciente, vejo imagens que surgem diante de mim, rostos que nunca vi. Ouço vozes. Um moço embrulhado num manto escuro passa apressado e diz-me, quase dentro de mim:

- Ele chegou!

- Ele quem?

Mas o moço fugiu pelos ares, num ziguezague, parecendo um grande morcego. Cresce o ruído. Cresce a confusão dentro de mim...

(extraído de: CORÇÃO, Gustavo. Rosa, rosae. In: Lições de abismoSão Paulo:
Círculo do Livro, 1976. parte III, cap. XII, p. 245-246)


Nelson Rodrigues

O ensaio geral de Vestido de noiva foi o próprio inferno. Ziembinski tinha, então, uma resistência quase infinita. Os intérpretes sabiam o texto, as inflexões e cada movimento. Durante oito meses, à tarde e à noite, a peça fora repisada até o extremo limite da saturação. Mas faltava ainda a luz.

Não posso falar da luz sem lhe acrescentar um ponto de exclamação. E, com efeito, o velho teatro não era iluminado artisticamente. Havia, no palco, uma lâmpada de sala de visitas, e só. E a luz fixa, imutável — e burríssima — nada tinha a ver com o texto e com os sonhos da carne e da alma. Ziembinski era o primeiro a iluminar poética e dramaticamente uma peça.

Bem me lembro de Alaíde, quando apareceu, pela primeira vez, de noiva. Ficamos atônitos com a beleza. Dentro da luz, era um maravilhoso e diáfano pavão branco. Ziembinski exigira dez ensaios gerais. Era pedir demais ao nosso Municipal. Os dez foram reduzidos a três. Por três dias e por três noites, o bárbaro polonês esganiçou-se no palco.

Ninguém faz uma ideia da paciência e martírio do elenco. A 27 de dezembro de 1943 e, portanto, véspera da estreia, atrizes e atores tinham, em cada olho, um halo negro. Alguém que, de repente, entrasse ali havia de imaginar que os intérpretes levavam olheiras de rolha queimada. Ziembinski tinha a obsessão da luz exata.

Meia-noite e todos presentes. Eu me lembro de um figurante que, de repente, começou a chorar. Perguntaram: — “Que é isso? Não faça isso”. E ele, num gemido maior: — “Estou cansado! Estou cansado!”. De fato, a exaustão enfurecia e desumanizava os presentes. Os intérpretes passaram a se detestar uns aos outros.

E, por fim. às cinco da manhã, houve entre Ziembinski e Carlos Perry um bate-boca quase homicida. Não lembro qual foi o motivo, nem sei se houve motivo. Já amanhecendo, o simples cansaço enlouquecia autor, diretor, artistas, contrarregra, eletricistas. E Ziembinski e Carlos Perry andaram por um fio. Quando subi ao palco, estava certo de que não ia haver estreia, não ia haver nada.

(extraído de: RODRIGUES, Nelson. A menina sem estrela: memórias. Organizado
por Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.  cap. 47, p. 166-167)


J. R. R. Tolkien

Uma luz se acendeu no céu, um clarão de fogo amarelo atrás de barreiras escuras. Pippin se escondeu amedrontado naquele momento, perguntando-se para que terra temível Gandalf o levava. Esfregou os olhos, e então viu que era a lua subindo acima das sombras do leste, agora quase cheia. Isso significava que a noite estava começando, e a escura viagem continuaria por horas. [...]

Pippin ficou sonolento outra vez, e prestou pouca atenção ao que Gandalf lhe dizia sobre os costumes de Gondor, e sobre como o Senhor da Cidade mandara construir faróis nos topos das montanhas externas, ao longo das duas bordas da grande cordilheira, e mantinha postos nesses pontos onde cavalos descansados estavam sempre de prontidão para levar os mensageiros em missões a Rohan no norte, ou a Belfalas no sul. — Faz tempo que os faróis não se acendem — disse ele —, e nos dias antigos eles não eram necessários, pois Gondor tinha as Sete Pedras. — Pippin se agitou, inquieto.

— Durma outra vez, e não tenha medo! — disse Gandalf. — Pois você não está indo para Mordor, como Frodo, mas para Minas Tirith, e lá estará tão a salvo como poderia estar em qualquer outro lugar nestes tempos. Se Gondor cair, ou se o Anel for tomado, o Condado não será nenhum refúgio.

— Você não me consola — disse Pippin, mas apesar disso foi dominado pelo sono. A última coisa de que pôde se recordar antes de cair em sonhos profundos foi a rápida visão de picos altos e brancos, reluzindo como ilhas flutuantes acima das nuvens, quando captavam a luz da lua que ia em direção ao oeste. Ficou imaginando onde Frodo estaria, se já tinha chegado a Mordor, ou se estaria morto, sem saber que Frodo, de muito longe, observava a mesma lua que se punha além de Gondor, antes do início do dia.

(extraído de: TOLKIEN, J. R. R. O senhor dos anéis: o retorno do rei. Traduzido por Lenita Maria Rímoli Esteves
e Almiro Pisetta. 2. ed. 8. reimpr. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 5-6)



Andrei Tarkovski

Pelo pátio do mosteiro, ao longo dos intermináveis muros de pedra, um homem suarento e de cabelos desgrenhados está correndo. Sob suas axilas ele leva asas de madeira. Uma multidão diversificada e enfurecida corre atrás dele — homens, crianças, mulheres e monges. Eles gritam e atiram-lhe pedras. Um dos monges, magro e pálido como um papel, pragueja contra ele, ofegando devido à corrida inabitual.


Sem olhar em volta, o homem corre em direção à catedral, que está localizada nos fundos do pátio calçado por pedras.

A multidão quase o alcança, porém ele se atira rumo às portas abertas da catedral, pulando com um salto os degraus da entrada, passa debaixo das abóbadas imersas numa fresca escuridão e, desaparecendo numa escada em caracol, avança a subida íngreme e gasta.

Embaixo, as vozes graves de seus perseguidores reverberam. Apertando-se uns contra os outros, empurrando-se mutuamente, ofegando e xingando, eles correm adiante.

O homem já está no campanário. Ele veste as asas com pressa, as prende nas costas febrilmente, ajustando as alças especiais, e trepa na grade trêmula da cerca.

Embaixo, a multidão hostil se agita, possuída. Centenas de pessoas, centenas de gargantas vociferantes, brados, xingamentos.

O homem abre as asas e, afastando-se o suficiente para impulsionar-se, salta do campanário.

A multidão exclama, imobiliza-se e, aterrorizada, divide-se em duas partes, abrindo-lhe uma passagem, sobre a qual o homem voa.

Ele voa sobre a terra, como um anjo.

(extraído de: TARKOVSKI, Andrei. Andrei Rublióv: roteiro literário. Traduzido
por Márcia Vinha. São Paulo: Martins, 2008.  p. 175-176)

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