sábado, 25 de fevereiro de 2012

8EF: Texto teatral escrito/3

O anúncio feito a Maria

PAUL CLAUDEL


SEGUNDO ATO

A mesma sala.

VOZ DE MULHER NO CÉU, do alto da mais alta torre de Monsanvierge:

Salva Rainha, mãe de misericórdia,
Vida, doçura,
Esperança nossa,
Salve...

Longa pausa. A cena permanece alguns instantes vazia.


PRIMEIRA CENA

A Mãe e Mara entram.

MARA — Que foi que ela disse?
A MÃE — Eu lhe falei como por acaso. Tu bem vês que ela perdeu toda a alegria!
MARA — Nunca falou tanto como agora!
A MÃE — Não ri mais, porém. E isso me corta o coração!
Talvez seja porque Jacquinho está fora; mas volta hoje.
— E, além disso, o pai partiu.
MARA — Foi só o que lhe disseste?
A MÃE — Foi só, sem nada mudar, como me fizeste repetir:
Que Jacquinho e tu, tu o amas, etc.
Mas que dessa vez é preciso não se fazer de tola e não se deixar levar, isso eu acrescentei e o repeti duas ou três vezes.
Romper, contra a vontade do teu pai, esse casamento que já está como feito!
Que não iria o povo dizer?
MARA — E ela, que respondeu?
A MÃE — Ela desatou a rir, e eu... eu desatei a chorar.
MARA — Eu a farei rir, se farei!
A MÃE — Não era daquele riso que eu amo, o riso de minha filhinha. E desatei a chorar.
E lhe dizia: “Não, não, Violaine, minha filha!”
E ela, então, sem falar, fez um sinal com a mão: queria ficar sozinha.
Ah! como os filhos nos fazem sofrer!
MARA — Psiu!
A MÃE — Que foi?
Tenho remorso do que fiz.
MARA — Ora! Não a estás vendo lá no fundo? Ela caminha por detrás das árvores.
Agora sumiu.

Silêncio. Ouve-se atrás da cena um toque de corneta.

A MÃE — Jacquinho está chegando. Juro que é o som da sua corneta!
MARA — Vamos embora daqui.

Elas saem.


SEGUNDA CENA

Jacques Hury entra, e olha em torno de si.

JACQUES HURY — Não a vejo.
E no entanto ela mesma mandara dizer
Que desejava ver-me esta manhã
Aqui.

Entra Mara. Caminha para Jacques e, a seis passos dele, faz uma cerimoniosa reverência.

JACQUES HURY — Bom dia, Mara.
MARA — Tua criada, Senhor!
JACQUES HURY — Que brincadeira é esta?
MARA — Não te devo eu prestar obediência?
Não és o senhor aqui, tendo apenas Deus acima de si, como o próprio Rei de França e o Imperador Carlos Magno?
JACQUES HURY — Caçoa quanto quiseres, que isto não deixa de ser exato. Ó Mara, que bom! Como eu sou feliz, cara irmã!
MARA — Não me chames cara irmã! Sou tua criada, já que é preciso.
Homem de Braine, filho da terra de servos, não sou tua irmã, não és do nosso sangue!
JACQUES HURY — Sou o esposo de Violaine.
MARA — Não o és ainda!
JACQUES HURY — Amanhã, o serei.
MARA — Quem poderá garantir?
JACQUES HURY — Mara, pensei bastante
E creio que foi um sonho teu a história que me contaste outro dia.
MARA — Que história?
JACQUES HURY — Não te faças de tola.
A história do pedreiro, e esse beijo clandestino na aurora...
MARA — É possível. Com certeza eu vi mal. Tenho bons olhos, no entanto.
JACQUES HURY — E corre por aí que o homem está leproso.
MARA — Jacques, eu não gosto de ti.
Mas tens o direito de saber tudo. É preciso que tudo seja claro e límpido em Monsanvierge, posta em evidência sobre todo o Reino.
JACQUES HURY — Tudo será tirado a limpo agora mesmo.
MARA — Tu és esperto, e coisa alguma te escapa.
JACQUES HURY — Percebo ao menos que não gostas nada de mim.
MARA — Que dúvida? Não era o que eu dizia?
JACQUES HURY — Nem todos aqui, porém, têm o mesmo sentimento!
MARA — É de Violaine que falas? Eu me envergonho dessa menina.
É vergonhoso entregar-se inteirinha,
Alma, carne, pele, coração; o interior, o exterior, a raiz!
JACQUES HURY — Eu sei que ela é, ó Mara, inteiramente minha.
MARA — Pois sim.
De que maneira diz isto! Como está seguro das coisas que são dele!
Brainard de Braine!
Só são da gente as coisas que fizemos, ou conquistamos, ou ganhamos um dia.
JACQUES HURY — Mas eu, Mara, tu não me desagradas; não tenho nada contra ti.
MARA — Nem também contra tudo que é daqui...
JACQUES HURY — Não tenho culpa de não seres homem e de teus bens passarem para mim!
MARA — Como está orgulhoso e contente!
Olha que já não pode segurar o riso!
Vamos! Ri, não faças cerimônia!

Ele ri.

Conheço muito bem a tua cara.
JACQUES HURY — Estás é zangada por não poder afligir-me.
MARA — Como outro dia, enquanto o pai falava, rindo de um olho e chorando seco do outro.
JACQUES HURY — Não sou acaso o senhor de um belo domínio?
MARA — Depois, o pai estava velho, não é verdade? E tu sabes, decerto, um pouquinho mais que ele.
JACQUES HURY — Cada homem tem o seu tempo.
MARA — É verdade, Jacques, tu és um belo rapaz.
Ei-lo vermelho agora!
JACQUES HURY — Não me amofines.
MARA — Em todo caso, é pena!
JACQUES HURY — Pena o quê?
MARA — Adeus, esposo de Violaine! Adeus, senhor de Monsanvierge!
JACQUES HURY — Far-te-ei ver que o sou!
MARA — Recebe então o espírito do lugar, Brainard de Braine!
Ele julga, como um camponês, que tudo é seu; irá ver o contrário.
Julga, como um camponês, que é só dele o que há de mais alto no centro do seu pequeno campo achatado!
Mas Monsanvierge é de Deus, e o senhor de Monsanvierge é de Deus, e o senhor de Monsanvierge é homem de Deus, que não tem nada de seu,
Tendo recebido tudo de outro.
Eis a lição que nos dão aqui, de pai a filho! Não há posto mais importante que o nosso!
Recebe o espírito dos teus senhores!

Falsa saída.

Ah!
Violaine, que eu encontrei,
Encarregou-me de um recado.
JACQUES HURY — Por que não disseste logo?
MARA — Espera-te junto à fonte.


TERCEIRA CENA

JACQUES HURY — Ave, Violaine, minha noiva entre os ramos em flor!

Violaine está do lado de fora, invisível.

Como estás linda!
VIOLAINE — Jacques! Bom dia, Jacques!
Por que estiveste tanto tempo ausente?
JACQUES HURY — Era preciso que eu vendesse tudo, que me desembaraçasse de todas as coisas, para ser o homem de Monsanvierge somente
E o teu.
— Que vestido maravilhoso é este?
VIOLAINE — Já te esqueceste? Eu o vesti por tua causa. Já te falara dele...
É o hábito das monjas de Monsanvierge, que elas usam no coro, e que é quase, fora o manípulo,
A dalmática do diácono que têm o privilégio de vestir, algo sacerdotal, hóstias que são,
E que as mulheres de Combernon têm a sorte de poder usar duas vezes:
Primeiro, no dia do casamento;

Ela entra.

Segundo, no dia da morte.
JACQUES HURY — Então é verdade, Violaine? É hoje o dia do nosso casamento?
VIOLAINE — Jacques, ainda é tempo, não estamos ainda casados!
Se apenas quiseste fazer o gosto de papai, é tempo ainda de voltar atrás, pois é de nós que se trata. Dize uma palavra somente, e eu não ficarei, Jacques, sentida contigo.
Pois não há ainda promessa definitiva entre nós dois, e não sei se te agrado ainda.
JACQUES HURY — Como estás bela, Violaine! E como é belo o mundo em que estás,
A parte que me foi reservada!
VIOLAINE — És tu, Jacques, o que há de melhor na terra!
JACQUES HURY — É verdade que tu queres ser minha?
VIOLAINE — Sim, é verdade. Bom dia, meu bem amado! Eu te pertenço.
JACQUES HURY — Bom dia, minha mulher! Bom dia, doce Violaine!
VIOLAINE — Como são boas, de ouvir, essas coisas...
JACQUES HURY — É preciso nunca mais deixar de estar aqui! Dize que não deixarás jamais de ser a mesma, e o anjo que Deus me enviou!
VIOLAINE — Nunca o que é meu deixará de ser teu, ó Jacques!
JACQUES HURY — E eu Violaine...
VIOLAINE — Não digas nada. Nada te peço. Estás aqui. Isso me basta.
Bom dia, Jacques!
Ah! esta hora é bela e não peço nenhuma outra.
JACQUES HURY — Amanhã, será mais belo ainda!
VIOLAINE — Amanhã, terei deixado esta veste...
JACQUES HURY — Mas estarás tão perto de mim que não mais te verei.
VIOLAINE — Bem perto, muito perto de ti!
JACQUES HURY — Esta Rainha, amanhã, à vista de todos, eu a tomarei entre os braços.
VIOLAINE — Sim, Jacques, não a deixes partir!
Ah, toma contigo a tua filhinha, que não a possam achar, fazer-lhe mal algum!
JACQUES HURY — E não terás saudade então, nesse momento, do linho e do ouro de agora?
VIOLAINE — Não podia eu fazer-me bela, Jacques, apenas por uma pequena, por uma pobre hora?
JACQUES HURY — Sim, meu belo lírio, que eu não me canso de considerar como um astro, em todo o seu esplendor!
VIOLAINE — Ó Jacques, dize ainda uma vez que me achas bela!
JACQUES HURY — Eu te acho bela, Violaine.
VIOLAINE — A mais bela entre as mulheres, e as outras não são nada aos teus olhos?
JACQUES HURY — Nada, Violaine.
VIOLAINE — E me amas unicamente, como o esposo mais terno ama o pobre ser que lhe foi dado?
JACQUES HURY — Sim, Violaine.
VIOLAINE — E que se dá a ele de todo o coração, podes crê-lo, sem nada reservar para si?
JACQUES HURY — E tu, Violaine, não crês, então, em mim?
VIOLAINE — Eu creio em ti, Jacques! Eu creio em ti. Eu creio.
Tenho confiança em ti, meu bem amado.
JACQUES HURY — Por que, então, este ar de susto e de medo?
Mostra-me a mão esquerda.

Ela obedece.

Meu anel não está mais no teu dedo.
VIOLAINE — Explicarei tudo agora mesmo, e ficarás tranquilo.
JACQUES HURY — Já o estou, Violaine. Confio em ti.
VIOLAINE — Sou mais que um anel, ó Jacques. Sou um grande tesouro.
JACQUES HURY — Eis que duvidas de mim outra vez.
VIOLAINE — Jacques! Afinal, não há mal nenhum em que eu te ame.
É a vontade de Deus e de meu pai.
Tu é que terás de cuidar de mim. E quem sabe serás mesmo capaz de defender-me, capaz de preservar-me!
Basta que eu me dê a ti completamente.
E o resto é contigo apenas.
JACQUES HURY — É assim que te entregas a mim, ó minha flor-de-sol?
VIOLAINE — Sim, Jacques, é assim.
JACQUES HURY — Quem te arrancará, então, dos meus braços?
VIOLAINE — Ah! como o mundo é grande e estamos nele sozinhos!
JACQUES HURY — Filhinha, eu sei que teu pai partiu.
E eu também não tenho ninguém comigo para dizer-me o que devo fazer, aquilo que é bom e que é mau.
É preciso que me ajudes, Violaine...
VIOLAINE — Meu pai me abandonou.
JACQUES HURY — Mas eu, Violaine, eu fiquei.
VIOLAINE — Nem minha mãe me ama, nem minha irmã, sem que eu lhes tenha feito mal algum.
E não me resta senão este grande homem terrível que eu não conheço.

Ele faz o gesto de tomá-la nos braços.
Ela o afasta vivamente.

VIOLAINE — Jacques. Não toques em mim!
JACQUES HURY — Sou, acaso, um leproso?
VIOLAINE — Jacques, eu quero falar-te. Ah! como é difícil!
Não me faltes, ó Jacques, pois eu só tenho a ti!
JACQUES HURY — Mas quem te quer, Violaine, fazer mal?
VIOLAINE — Fica sabendo, pois, o que vais fazer tomando-me por mulher!
Deixa-me falar-te humildemente, Jacques, meu senhor.
Que vais receber minha alma e meu corpo em depósito das mãos de Deus e de meu pai que os fizeram.
Considera o dote que eu te trago, que não é como o das outras moças,
Mas essa montanha santa, noite e dia em oração diante de Deus, como um altar fumegante.
Lâmpada sempre acesa que temos a tarefa de nutrir com óleo!
E a testemunha de nosso casamento não é homem algum, mas esse Senhor de que temos o nosso feudo.
O Todo-Poderoso, Deus dos Exércitos.
E não é o sol de julho que nos ilumina, mas o esplendor da sua face.
JACQUES HURY — Não, Violaine, eu não sou clérigo, nem monge, nem beato.
Não sou o sacristão e o converso de Monsanvierge.
Mas o cargo que tenho, hei de cumpri-lo:
Alimentar essas aves em coro,
E encher o cesto que desce do céu cada manhã.
Está escrito. Está direito.
Compreendi-o bem, meti-o na cabeça e não é bom pedir mais nada.
É preciso não me pedir para compreender o que me excede, e porque essas mulheres se emparedaram naquele pombal do alto.
Aos celestes o céu, aos terrestres a terra.
Pois o trigo não cresce sozinho e é preciso um lavrador ao daqui.
E isto, eu posso dizê-lo sem gabar-me que o sou, e que ninguém me ensinará nada nesse ponto, nem mesmo teu pai talvez.
Porque era velho e apegado às suas ideias.
A cada um seu lugar, eis a justiça.
E teu pai, dando-te a mim, junto com Monsanvierge,
Sabia o que fazia, e que era justo.
VIOLAINE — Mas eu, Jacques, eu não te amo porque isto seja justo.
E mesmo que não fosse, te amaria ainda, e mais.
JACQUES HURY — Não compreendo, Violaine.
VIOLAINE — Jacques, não me forces a falar!
Tu me amas tanto, e não posso fazer-te mal!
Deixa-me, não pode haver justiça entre nós dois, mas somente fé e caridade.
Afasta-te de mim enquanto é tempo.
JACQUES HURY — Não compreendo, Violaine.
VIOLAINE — Meu bem amado, não me forces a confiar-te o meu grande segredo.
JACQUES HURY — Um segredo, Violaine?
VIOLAINE — Tão grande, que tudo está consumado, e não me pedirás mais para desposar-te.
JACQUES HURY — Não compreendo.
VIOLAINE — Não sou bastante bela agora, Jacques? Que desejas ainda?
Que se deseja de uma flor,
Senão que seja bela e perfumada um minuto, pobre flor, antes que tudo acabe?
A flor é curta, mas a alegria que ela deu, esse minuto,
Não é coisa que tenha início ou fim.
Não sou eu bastante bela? Falta-me alguma coisa?
Ah! vejo teus olhos, meu amado! Haverá alguma coisa em ti nesse momento que não me ame ou que duvide de mim?
Será que a minha alma não basta?
Toma, Jacques, a minha alma, que ainda estou aqui; aspira a minha alma até as raízes profundas.
Basta um momento para morrer, e a morte mesma, um no outro,
Não nos irá, mais do que o amor, matar, — e terá o que está morto precisão de viver?
Que queres tu fazer de mim ainda?
Foge, afasta-te! Por que queres desposar-me? Por que queres tomar
O que só a Deus pertence?
A mão de Deus foi colocada sobre mim e tu não podes defender-me.
Não seremos jamais, ó Jacques, marido e mulher neste mundo!
JACQUES HURY — Violaine, que palavras estranhas são essas, tão ternas, tão amargas? Por que funestos e insidiosos caminhos me queres conduzir?
Creio que queres experimentar-me, zombar de mim, homem simples e rude.
Ah! Violaine, como estás bela assim, e como tenho medo no entanto de ver-te nesse vestido terrível!
Que não é um adorno de mulher, mas o traje do sacrificante no altar.
A dalmática do que ajuda ao sacerdote, deixando o flanco aberto e os braços livres!
Ah! eu bem vejo que é o espírito de Monsanvierge que vive em ti, e a flor suprema é fora do jardim fechado!
Ah! não voltes para mim esse rosto que não é mais deste mundo, que não é mais de Violaine.
Muitos anjos, já, ajudam no céu à missa!
Tem compaixão de mim, que sou um homem sem asas, que me alegrava com o companheiro que Deus me dera, e que escutava suspirar, a cabeça ao meu ombro!
Doce pássaro, o céu é belo; mas é belo também ser cativado!
O céu é belo, mas é belo também e digno de Deus encher o coração de um homem sem nada deixar vazio!
Não me condenes, oh! não, à privação do teu rosto!
É claro que eu sou um homem sem luz e sem beleza, mas eu te amo, meu anjo, minha rainha e querida!
VIOLAINE — Então foi inútil que eu te advertisse, e queres mesmo tomar-me mulher, e não te afastarás jamais do teu propósito?
JACQUES HURY — Nunca, Violaine.
VIOLAINE — Quem tomou uma esposa, não são mais que uma carne, e nada, nada os separa.
JACQUES HURY — Nada, Violaine.
VIOLAINE — Tu o queres!
Não convém mais então que oculte nada e guarde comigo mais tempo
O grande, inefável segredo.
JACQUES HURY — Segredo, Violaine?
VIOLAINE — E tão grande, Jacques, em verdade,
Que o teu coração ficará farto
E nada mais me pedirá,
E não seremos jamais um do outro arrancados.
Uma comunicação tão profunda
Que nem a vida, nem o inferno, nem o céu mesmo, ó Jacques,
Não a farão jamais cessar, e esse momento
Em que te foi revelada
Na fornalha desse sol terrível aqui presente que nos impede quase de ver a face do outro...
JACQUES HURY — Fala, Violaine, fala!
VIOLAINE — Mas dize-me ainda uma vez que me amas.
JACQUES HURY — Eu te amo!
VIOLAINE — E que sou tua mulher e o teu único amor!
JACQUES HURY — Minha mulher, meu único amor!
VIOLAINE — Conhece o fogo que me devora;
Conhece a carne que a tua alma adora,
Chega perto de mim!

Movimento.

Mais perto! Mais perto ainda. Bem a meu lado. Senta-te nesse banco. Assim.

Silêncio.

E dá-me a tua faca.

Ele entrega-lhe a faca. Ela faz uma incisão no linho da túnica, bem no flanco, em cima do coração e debaixo do seio esquerdo. E inclinada sobre ele, afastando com os dedos a abertura, mostra-lhe a carne em que aparece, evidente, a primeira mancha da lepra. Silêncio.

JACQUES HURY, desviando um pouco o rosto. — Dá-me a faca.
Violaine, não estarei enganado? Que flor é esta de prata na tua carne blasonada?
VIOLAINE — Não, Jacques, não te enganaste.
JACQUES HURY — É o mal, Violaine, é o mal?
VIOLAINE — Sim, Jacques, é o mal.
JACQUES HURY — A lepra!
VIOLAINE — Tu és difícil de convencer.
Precisas ver para acreditar.
JACQUES HURY — E que lepra é a mais temível,
A da alma ou a do corpo?
VIOLAINE — Não posso dizer nada da outra; só conheço a do corpo, que é um mal bem grande.
JACQUES HURY — Então tu não conheces a outra, ó renegada?
VIOLAINE — Não sou uma renegada.
JACQUES HURY — Renegada. Infame.
Renegada na alma e no corpo!
VIOLAINE — Então, já não me pedes mais, Jacques, para casar contigo?
JACQUES HURY — Não zombes de mim, ó mulher do demônio!
VIOLAINE — Esse o grande amor que me tinhas...
JACQUES HURY — Esse o lírio que eu elegera...
VIOLAINE — Esse o homem que ficou no lugar de meu pai...
JACQUES HURY — Esse o anjo que Deus me havia dado...
VIOLAINE — “Ah, quem nos arrancará jamais um do outro? Eu te amo, Jacques, e tu me defenderás, e nada terei de temer nos teus braços.”
JACQUES HURY — Não zombes de mim com essas palavras terríveis!
VIOLAINE — Dize:
Faltei eu à minha palavra? Não estás farto, agora, da minha carne?
Esquecerás de agora em diante a tua Violaine, e o coração que te mostrou?
JACQUES HURY — Afasta-te de mim.
VIOLAINE — Está bem. Estou bastante longe, Jacques, e não tens nada a temer.
JACQUES HURY — Longe, longe,
Menos longe do que estiveste do teu vil leproso,
Da sua carne corrompida!
VIOLAINE — É de Pedro de Craon que tu falas?
JACQUES HURY — É dele que falo, que beijaste na boca.
VIOLAINE — E quem foi que te disse?
JACQUES HURY — Mara viu com seus olhos.
E contou-me tudo como era seu dever.
E eu, miserável, não queria acreditar!
Vamos, confessa! Confessa logo! Confessa que é verdade!
VIOLAINE — É verdade, Jacques.
Mara sempre diz a verdade.
JACQUES HURY — E é verdade que o beijaste no rosto?
VIOLAINE — Sim. É verdade.
JACQUES HURY — Ó maldita, o fogo do inferno terá assim tanto gosto para o teres em vida cobiçado?
VIOLAINE, muito baixo — Não maldita,
Mas doce, doce Violaine!
JACQUES HURY — E ousas negar que esse homem te tenha possuído?
VIOLAINE — Não nego nada.
JACQUES HURY — Mas eu te amo ainda, Violaine! Dize qualquer coisa, se nada tens a dizer; eu tudo acreditarei! Fala, eu te imploro! Dize que não é verdade!
VIOLAINE — Eu não posso tornar-me inteiramente negra num segundo. Jacques, mas dentro de alguns meses, alguns meses ainda,
Não mais me conhecerás!
JACQUES HURY — Dize-me que tudo isso não é verdade.
VIOLAINE — Mara diz sempre a verdade, e essa flor também, que no meu flanco viste.
JACQUES HURY — Adeus, Violaine.
VIOLAINE — Adeus, Jacques.
JACQUES HURY — Que vais fazer, desgraçada?
VIOLAINE — Deixar essas roupas. Esta casa.
Cumprir a lei. Mostrar-me ao sacerdote.
Partir para...
JACQUES HURY — Para onde?
VIOLAINE — ...O lugar reservado à gente de minha espécie.
O leprosário dos rochedos.
JACQUES HURY — Quando irás?
VIOLAINE — Hoje mesmo. Esta noite.

Longo silêncio.

Não há outra coisa a fazer.
JACQUES HURY — É preciso evitar o escândalo.
Vai tirar essa veste e pôr um vestido de viagem, e eu te direi o que convém fazer.

Saem os dois.


QUARTA CENA

A sala do primeiro ato. Toda esta cena pode ser representada de modo que o público veja os gestos, mas não entenda as palavras.

MARA, entrando rapidamente — Eles vêm cá. Creio que o casamento está rompido.
Estás ouvindo?
Não vás dizer nada.
Fica quieta!
A MÃE — Como?
Ó malvada, ó perversa, tu obtiveste o que querias!
MARA — Deixa. Passa logo.
Aliás,
Não adiantaria nada. Pois é comigo
Que ele deve casar, e não com ela. No fim de contas é melhor para ela. Tem de ser assim. Estás ouvindo?
Fica quieta!
A MÃE — Quem te disse isto?
MARA — Será que eu tenho necessidade que me digam as coisas? Vi tudo pela cara dos dois. Apanhei-os no auge. Compreendi tudo num momento.
Fiquei com pena de Jacques, coitado!
A MÃE — Arrependo-me do que disse.
MARA — Tu não disseste nada. Não sabes nada. Fica quieta.
E se eles te disserem algumas coisa, seja o que for,
Concorda com eles, faze o que quiserem.
Não há mais jeito.
A MÃE — Espero que tudo se arranje!


QUINTA CENA

Entra Jacques Hury e depois Violaine, toda de preto, vestida como quem vai viajar.

A MÃE — Que houve, Jacques? Que houve, Violaine?
Por que puseste essa roupa como se fosses partir?
VIOLAINE — Eu vou partir também.
A MÃE — Partir? Partir tu também?
Jacques, que se passou entre ambos?
JACQUES HURY — Nada,
Mas sabes que fui ver minha mãe em Braine e acabo de chegar.
A MÃE — E daí?
JACQUES HURY — Sabes que minha mãe é velha.
E disse que quer ver e abençoar a nora
Antes de morrer.
A MÃE — Não poderá esperar pelo casamento?
JACQUES HURY — Não pode. Está doente.
E esse tempo de colheita também, onde se tem tanto a fazer,
Não é tempo de casamento.
Conversamos sobre isso tudo agora mesmo, Violaine e eu, muito amigavelmente,
E decidimos que era melhor esperar
O outono.
Até então, ficará em Braine, em casa de mamãe.
A MÃE — Tu estás de acordo, Violaine?
VIOLAINE — Sim, minha mãe.
A MÃE — Mas o quê? Tu queres partir hoje mesmo?
VIOLAINE — Esta noite.
JACQUES HURY — Eu irei acompanhá-la.
O tempo urge, e também o trabalho nesse mês de feno e de colheita. Já fiquei tempo demais ausente.
A MÃE — Fica, Violaine. Não te vás de casa, tu também!
VIOLAINE — É por pouco tempo, mamãe!
A MÃE — Pouco tempo, tu prometes?
JACQUES HURY — Pouco tempo. E quando vier o outono,
Ei-la de novo conosco, para não mais nos deixar.
A MÃE — Ah! Jacques, por que a deixas partir?
JACQUES HURY — Imaginas que não seja duro para mim?
MARA — Mãe, o que eles dizem é razoável.
A MÃE — É duro ver minha filha deixar-me.
VIOLAINE — Não fiques triste, mamãe!
Não estou certa de tua afeição, da de Mara, da de Jacques, meu noivo?
Não é verdade, Jacques? Ele é meu como sou dele, e nada nos pode separar. Olha-me, caro Jacques. Vê como ele está chorando por me ver partir!
Mas não é hora de chorar, mamãe! Não sou jovem e bela, amada por todos?
Papai partiu, é verdade, mas deixou-me o mais terno esposo, o amigo que jamais me deixará sózinha!
Não é hora de chorar, mas de alegrar-se.
Ah, querida mãe, como a vida é bela e como sou feliz!
MARA — E tu, Jacques, que dizes? Não tens um ar muito contente...
JACQUES HURY — Não é natural que eu esteja triste?
MARA — Ora! Uma separação de meses...
JACQUES HURY — Mas longa demais para o meu amor.
MARA — Escuta, Violaine, como ele falou bonito!
Mas, que é isto, minha irmã? Tu também estás triste? Sorri-me com esta boca tão bela. Ergue esses olhos azuis que nosso pai tanto amava. Olha, Jacques! Repara como tua mulher é bela quando sorri!
Nunca te tomarão Violaine! Como ficaria triste a tua casa sem o pequeno sol que a ilumina?!
É preciso amá-la muito, homem sem coração! Dize-lhe que tenha coragem!
JACQUES HURY — Coragem, Violaine!
Tu não me perdeste. Não estamos um para o outro perdidos!
Vê que não duvido do teu amor; duvidarias então do meu?
Será que duvido de ti, Violaine? Que não te amo, Violaine?
Que não estou certo, seguro de ti, Violaine?
Falei de ti à minha mãe; imagina como será feliz de ver-te.
É duro deixar a casa dos pais. Mas estarás num abrigo seguro, que ninguém violará.
Nada terão a temer, Violaine, o teu amor e a tua inocência.
A MÃE — São palavras bem amáveis.
E no entanto há nelas, e naquelas que acabas de dizer, minha filha,
Qualquer coisa de estranho que me aflige.
MARA — Nada vejo de estranho, minha mãe!
A MÃE — Violaine! Se te causei desgosto há pouco, minha filha,
Esquece o que eu te disse.
VIOLAINE — Não me deste desgosto algum, minha mãe.
A MÃE — Deixa-me então abraçar-te.

Ela abre os braços.

VIOLAINE — Não, mamãe!
A MÃE — O quê?
VIOLAINE — Não.
MARA — Violaine, isso é feio! Tens medo que te toquemos? Por que nos tratas assim como leprosos?
VIOLAINE — Eu fiz um voto.
MARA — Que voto?
VIOLAINE — Que ninguém me toque.
MARA — Até voltares?

Silêncio. Ela abaixa a cabeça.

JACQUES HURY — Deixa Violaine em paz.
Tu vês que ela sofre.
A MÃE — Afastai-vos um pouco.

Eles se afastam.

Adeus, Violaine!
Tu não me enganas, minha filha, tu não enganas a mãe que te fez.
O que eu te disse é duro, mas vê que eu sofro bastante, e sou velha.
Tu és moça, tu esquecerás.
Meu marido partiu, e eis que agora minha filha me dá as costas.
A pena que a gente sofre não é nada, mas a que causamos aos outros
Nos impede de comer.
Pensa nisto, meu cordeiro sacrificado, e dize a ti mesma: eu não fiz mal, assim, a ninguém.
Aconselhei-te o que julguei melhor. Não me queiras mal, Violaine, salva tua irmã; será preciso deixá-la perder-se?
O bom Deus está contigo, é a tua paga.
É tudo. Não mais verás o meu rosto enrugado. Deus esteja contigo!
E se tu não me queres abraçar, posso ao menos abençoar-te, doce, doce Violaine!
VIOLAINE — Dá-me, dá-me a tua bênção, mamãe!

Ajoelha-se, e a Mãe faz o sinal da cruz sobre ela.

JACQUES HURY, voltando — Vem, Violaine, é hora.
MARA — Vai, e reza por nós.
VIOLAINE, gritando — Eu te dou os meus vestidos, Mara, e tudo o que era meu!
Não tenhas medo, não toquei em nada.
Não entrei sequer no meu quarto de casada.
— Ah, o meu pobre vestido de noiva, como era belo!

Abre os braços, como buscando apoio. Todos permanecem afastados. Sai, cambaleando, acompanhada de Jacques.


(extraído de: CLAUDEL, Paul. O anúncio feito a Maria: versão definitiva para a cena. Tradução de Dom Marcos Barbosa, O.S.B. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1968. segundo ato, p. 67-97)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

1EM: Texto narrativo/4

J. K. Rowling

Então, ela fechou os olhos e várias coisas aconteceram ao mesmo tempo: a cicatriz de Harry ardeu dolorosamente; a Horcrux vibrou tanto que o peito do suéter do garoto chegou a mexer; o quarto escuro e fétido se dissolveu momentaneamente. Ele sentiu uma súbita sensação de alegria e falou com uma voz aguda e fria: segure-o!

Harry oscilou sem sair do lugar: o quarto escuro e malcheiroso pareceu tornar a se fechar ao seu redor; ele não sabia o que acabara de acontecer.

— A senhora tem alguma coisa para mim? — perguntou, pela terceira vez, bem mais alto.

— Aqui — sussurrou ela, apontando para um canto. Harry ergueu a varinha e viu os contornos de uma penteadeira muito cheia sob uma janela com cortinas.

Desta vez, Batilda não foi à frente. Harry passou entre ela e a cama desfeita, a varinha erguida. Não queria tirar os olhos dela.

— Que é? — indagou ao chegar à penteadeira em que havia uma pilha de alguma coisa que, pelo cheiro e aspecto, parecia roupa de cama suja.

— Ali — disse ela apontando para a massa informe.

E, no instante em que ele virou a cabeça e varreu com o olhar o amontoado confuso à procura de um punho de espada, um rubi, ela fez um movimento estranho: Harry percebeu-o pelo canto do olho; o pânico fez com que se voltasse e o horror o paralisou ao ver o velho corpo se despojar e uma grande cobra sair do lugar onde fora o pescoço da bruxa.

A cobra atacou-o quando ele ergueu a varinha: a força da mordida em seu braço fez a varinha girar para o alto em direção ao teto, sua luz rodopiou sem direção pelo quarto e se apagou: então, um poderoso golpe de cauda em seu diafragma deixou-o completamente sem ar: ele tombou de costas sobre a penteadeira, no meio do monte de roupa imunda...

Harry rolou para o lado, evitando, por um triz, o rabo dacobra, que golpeava a penteadeira onde ele estivera um segundo antes; cacos da superfície de vidro choveram sobre ele quando bateu no chão. Lá de baixo, ele ouviu Hermione chamar:

— Harry?

Não conseguiu, porém, repor ar suficiente nos pulmões para responder: então uma massa lisa e pesada esmagou-o contra o chão e ele a sentiu deslizar por cima dele, forte, musculosa...

— Não! — ofegou, preso ao chão.

— Sim — sussurrou a voz. — Sssim... seguro você... seguro você...

— Accio... Accio varinha...

Nada aconteceu, porém, e ele precisava das mãos para tentar empurrar para longe a cobra que se enrolava em torno do seu tronco, tirando-lhe o ar, comprimindo a Horcrux contra seu peito, um círculo de gelo que pulsava de vida, a centímetros do seu próprio coração disparado, e seu cérebro se inundava de luz branca e fria, obliterando todo pensamento, sua respiração sufocada, passos distantes, tudo indo...

(extraído de: ROWLING, J. K. O segredo de Batilda. In: Harry Potter e as relíquias da morte. Tradução de Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. cap. 17, p. 267-268.

1º bimestre, atividade 3
24/2/2012

Reescreva o trecho acima assumindo como foco o do narrador protagonista.  

Formato: fonte Times New Roman, corpo 12, entrelinha 1,5.
Salve o arquivo como 1EM_103_Seu nome e envie-o anexado por e-mail ao professor, com o assunto 1EM.

8EF: Texto teatral escrito/2

O anúncio feito a Maria

PAUL CLAUDEL



PRIMEIRO ATO


PRIMEIRA CENA


Grande mesa ao centro, onde a Mãe passa a ferro uma roupa. Anne Vercors, sentado de costas para a mesa, tem nos joelhos um livro.


ANNE VERCORS — Tu julgas sem dúvida agradável estar a gente metido entre as tuas cruzes e rodelas!
A MÃE — Zomba de mim, grade zombeteiro, como se fosses assim tão forte nas contas! É o roto... o roto... Como é mesmo que se diz?
ANNE VERCORS — É o roto que se ri do rasgado.
A MÃE — Isto mesmo. O roto...


Salpica a roupa de água, molhando as pontas dos dedos numa vasilha ao lado.


É o roto que se ri do rasgado.
ANNE VERCORS — O roto... O roto... E que estás aí ruminando?
A MÃE — Bem o quiseras saber, meu finório... É segredo.
ANNE VERCORS — Pode bem ser que eu também tenha um...


Ele se levantou, e a contempla.


A MÃE, sem olhá-lo — Por que me olhas desse jeito?
ANNE VERCORS — Ó mulher! Eis depois que nos desposamos
Com o anel em forma de O, um mês,
Um mês que de anos fosse feito...
Como a árvore que dá sombra só,
Muito tempo permaneceste vazia.
Mas como hoje, um dia,
Nós nos contemplamos mutuamente no meio da vida.
E eu vi, Elizabeth, as primeiras rugas na tua fronte e em torno dos teus olhos.
E como no dia do nosso casamento,
Não na alegria, mas no sofrimento,
E na piedade, e na ternura, e na fidelidade, nos unimos.
E eis entre nós Violaine,
Esse doce narciso.
E depois a segunda nos nasce,
A negra Mara. Outra moça e não um rapaz!


Pausa


Agora, vamos, dize o que tens a dizer, porque eu sei bem que o tens,
Quando te pões a falar de qualquer coisa, sem olhar as pessoas.
A MÃE — Tu bem sabes que não se pode falar contigo; tu nunca estás. A não ser quando consigo apanhar-te de jeito para pregar-te um botão.
Mas não prestas atenção. Sempre como um cão a rosnar e a espreitar o que possa acontecer.
Os homens não compreendem nada!
ANNE VERCORS — As meninas, ei-las agora grandes.
A MÃE — Não tão grandes assim!
ANNE VERCORS — Com quem iremos casá-las?
A MÃE — Temos tempo para pensar.
ANNE VERCORS — Ó falsidade de mulher!
Quando é que pensaste uma coisa
Sem dizer primeiro o contrário? Eu te conheço.
A MÃE — Então não digo mais nada.
ANNE VERCORS — Jacques Hury.
A MÃE — Que tem ele?
ANNE VERCORS — Que tem? Eu lhe darei Violaine.
Ficará no lugar do filho que eu não tive. É um homem reto e corajoso.
Eu o conheço desde pequeno, quando sua mãe no-lo deu. Fui eu que lhe ensinei tudo.
As sementes, os bichos, as pessoas, as armas, as ferramentas, os vizinhos, os superiores, os costumes, — Deus, —
O tempo que vai fazer, as manhas da nossa terra,
O hábito de refletir em vez de falar.
Vi-o tornar-se homem enquanto me olhava.
E não era desses que contradizem, mas que refletem, como a terra que aceita toda semente.
O que é falso morre, sem criar raízes.
E não se pode dizer que ele crê no que é verdade; mas a verdade cresce nele, achando alimento.
A MÃE — Resta saber se ao menos eles se gostam...
ANNE VERCORS —  Violaine,
Ela fará o que eu disser.
E quanto a ele, eu sei que a ama, e tu sabes também.
No entanto o tolo não tem coragem de falar-me. Mas ele a terá, se quiser. Ele a terá e está acabado!
A MÃE — Bem. Bem.
Está direito. Está certo.
ANNE VERCORS — E é só? Não tens outra coisa a dizer?
A MÃE — Que haveria de ser?
ANNE  VERCORS — Bom. Vou chamá-lo aqui.
A MÃE — Chamá-lo?... Chamá-lo?...
ANNE VERCORS — É preciso que tudo seja arranjado depressa. Terei uma coisa a dizer-te...
A MÃE —  Uma coisa? Uma coisa a dizer-me? Um segredo? Anne, escuta-me um pouco...
Eu tenho medo...
ANNE VERCORS — E então?
A MÃE — Mara
Dormia no meu quarto este inverno, quando estiveste doente, e a gente conversava na cama.
É um bravo rapaz decerto, e eu o amo quase como um filho.
Não tem dinheiro, é verdade, mas é trabalhador, é de boa família.
Nós poderíamos dar-lhes
Nossa granja do Meio-Almude com as terras de baixo distantes demais para nós.
— Eu queria também falar-te dele.
ANNE VERCORS — E então?
A MÃE — Então...
Está claro que Violaine é a mais velha.
ANNE VERCORS — E daí?
A MÃE — Daí... Estás tão certo assim que ele a ame? — Nosso compadre, Mestre Pedro
(Por que ficou ele esta vez afastado sem falar com ninguém?)
Tu o viste, o ano passado, quando veio.
Com que olhar a fitava enquanto nos servia. — É verdade que não tem terra alguma, mas como ganha dinheiro!
— E ela, enquanto ele falava,
Com que olhos abertos o escutava,
Esquecendo de servir a bebida, e fazendo com que eu ralhasse!
— E Mara, tu a conheces! Tu sabes como ela é teimosa!
Se lhe deu na telha casar com Jacques, ah! ah! é dura como ferro!
Eu... eu não sei... Talvez fosse melhor...
ANNE VERCORS — Que tolices são essas?
A MÃE — Está bem, está bem. Estávamos conversando... Não vale a pena zangar-se!
ANNE VERCORS — Eu quero que seja assim.
Jacques desposará Violaine.
A MÃE — Está bem, minha gente: ele a desposará!
ANNE VERCORS — E agora, minha velha, tenho outra coisa a dizer-te, querida! Eu parto.
A MÃE — Tu partes? Tu partes?
Que estás dizendo, meu velho? Tu partes?
ANNE VERCORS — E é por isso que é preciso que Jacques despose Violaine sem demora e seja agora o homem em meu lugar.
 A MÃE — Tu partes, Senhor! E para quê?
 E para onde, então?
ANNE VERCORS, apontando vagamente o sul — Naquela direção.
A MÃE — Vais a Castelo?
ANNE VERCORS — Não. Mais longe.
A MÃE, baixando a voz — Vais procurar o outro Rei?
ANNE VERCORS — O Rei dos Reis, na Terra Santa.
A MÃE — Virgem Mãe! Meu Jesus!


Senta-se lentamente.


Será que a França já não te serve?
ANNE VERCORS — Há dor demais na França.
A MÃE — Mas estamos tão bem aqui e ninguém toca em Rheims.
ANNE VERCORS — É isto.
A MÃE — Isto o quê?
ANNE VERCORS — Somos felizes demais.
E os outros não.
A MÃE — Anne, não temos culpa.
ANNE VERCORS — Nem eles...
A MÃE — Eu não sei. Eu só sei que estás aqui e que eu tenho de ti duas filhas!
ANNE VERCORS — Mas tu não vês ao menos que tudo está fora do lugar, e cada um procura perdidamente o seu?
Essa fumaça, que às vezes se vê ao longe, não é palha queimando.
De todos os lados os pobres chegam em bando.
Não há mais Rei na França, como foi predito pelo Profeta.
A MÃE — É aquela passagem que nos leste outro dia?
ANNE VERCORS — No lugar do Rei temos dois meninos.
Um, o inglês, na sua ilha.
E o outro, tão pequenino, que não mais o vemos entre as canas do Loire.
Em lugar do Papa, temos três; e em vez de Roma não sei que concílio na Suíça.
Tudo entra em luta e em movimento,
Não sendo mais mantido pelo peso supremo.
A MÃE — E tu... Queres também ir embora?
ANNE VERCORS — Não posso mais ficar.
A MÃE — Anne, será que eu te dei algum desgosto?
ANNE VERCORS — Não, minha querida.
A MÃE — Tu me abandonas na velhice.
ANNE VERCORS — Manda-me embora, tu mesma.
A MÃE — Não me amas mais. Não és feliz comigo.
ANNE VERCORS — Estou cansado de ser feliz.
A MÃE — Não desprezes o dom que Deus de deu.
ANNE VERCORS — Louvado seja, que me cumulou de bens!
Eis trinta anos que mantenho de meu pai essa herança sagrada, e que Deus faz chover no meu solo.
E há dez anos que nem uma hora sequer do meu trabalho
Não foi quatro vezes paga.
Como se ele não tivesse querido usar balança comigo e deixar conta alguma aberta.
Tudo perece, e eu sou poupado.
De modo que aparecerei diante d’Ele vazio e sem título, entre os que houver recompensado.
A MÃE — Um coração reconhecido é bastante.
ANNE VERCORS — Mas eu, eu não estou ainda saciado dos seus bens.
Porque recebi alguns, estes aqui, deixaria acaso os maiores?
A MÃE — Não entendo o que dizes...
ANNE VERCORS — Qual dos vasos, o cheio ou o vazio, recebe mais?
Qual tem mais precisão de água, a cisterna ou a fonte?
A MÃE — A nossa quase secou este verão.
ANNE VERCORS — O mal do mundo foi que cada um quis gozar dos seus bens como se houvessem sido criados para ele.
A MÃE — Tua obrigação é estar aqui.
ANNE VERCORS — A não ser que me dispenses dela.
A MÃE — Nunca te deixarei!
ANNE VERCORS — Bem vês que a parte que eu tinha a fazer está feita.
As duas meninas estão criadas e Jacques está aí para ocupar meu lugar.
A MÃE — Que será que te chama para longe?
ANNE VERCORS, sorrindo — Um anjo com uma trombeta.
A MÃE — Qual?
ANNE VERCORS — A trombeta sem som que todos ouvem...
A MÃE — Jerusalém é tão longe!
ANNE VERCORS — Mais longe é o Paraíso.
A MÃE — Deus, no tabernáculo, está conosco aqui mesmo.
ANNE VERCORS — Mas não está o buraco.
A MÃE — Que  buraco?
ANNE VERCORS — O que fez a cruz ao ser plantada.
Eis, agora, que ela atrai tudo a si.
Lá está o ponto que não pode ser desmanchado, o nó que nunca desata.
A MÃE — Que adianta um peregrino só?
ANNE VERCORS — Eu não serei sozinho!
Ei-los todos em marcha comigo, uns me empurrando, outros me arrastando, outros me segurando pela mão.
A MÃE — Quem sabe não iremos precisar de ti?
ANNE VERCORS — Quem sabe não precisam de mim noutro lugar?
Tudo está em movimento. Quem sabe não perturbo a ordem de Deus, permanecendo aqui,
Onde a precisão de mim acabou?
A MÃE — Eu sei que és um homem inflexível.
ANNE VERCORS, ternamente, mudando de voz — Tu és sempre jovem e bela para mim e o amor que eu tenho pela minha Elizabeth de cabelos negros é grande.
A MÃE — Meus cabelos estão brancos!
ANNE VERCORS — Dize o sim, Elizabeth...
A MÃE — Anne, durante trinta anos não me deixaste... Que vai ser de mim sem meu chefe e companheiro?
ANNE VERCORS — ...O sim que nos separa, agora, baixinho,
Tão cheio como aquele que outrora fez de nós dois um só.


Silêncio.


A MÃE, baixinho — Sim, Anne.
ANNE VERCORS — Paciência, meu amor.
Breve estarei de volta.
Não podes acreditar em mim um pouco, sem que eu esteja aqui?
Muito cedo, outra separação há de vir.
— Vamos. Põe almoço de dois dias num saco. Eu preciso partir.
A MÃE — O quê? Hoje? Hoje mesmo?
ANNE VERCORS — Hoje mesmo. Adeus, Elizabeth!


Ele põe-lhe a mão na cabeça. Ela toma-lhe a mão e a beija.


ANNE VERCORS — Vou dizer a todos que venham. Homens, mulheres, crianças. Vou tocar o sino. É preciso que todos estejam aqui. Tenho alguma coisa a dizer.


Sai.




SEGUNDA CENA


Durante a cena ouve-se tocar o sino, que convoca o pessoal a casa.
Mara entra.


MARA, à Mãe — Vai. Dize-lhe que ela não se case com ele.
A MÃE — Mara, que é isto? Estavas aqui?
MARA — Vai. Dize-lhe que ela não se case com ele.
A MÃE — Ela, quem? Ele, quem? Quem te disse que eles vão casar?
MARA — Estava aqui. Ouvi tudo.
A MÃE — Pois bem, minha filha! Teu pai o quer.
Bem viste que fiz tudo o que pude e que ele nunca muda de ideia!
MARA — Vai dizer-lhe que ela não se case com ele, ou do contrário me mato!
A MÃE — Mara!
MARA — Vou enforcar-me no telheiro de lenha,
Onde acharam o gato enforcado.
A MÃE — Mara, como és má!
MARA — Ela quer tomá-lo de mim.
Ela quer tomá-lo agora!
Eu é que devia ser sua mulher, e não ela.
Ela sabe bem que sou eu.
A MÃE — É a mais velha.
MARA — E que tem isso?
A MÃE — Teu pai o quer.
MARA — Que me importa!
A MÃE — Jacques Hury a ama.
MARA — É mentira. Eu sei muito bem que não gostais de mim!
Ela foi sempre a predileta. Ah! quando falais de vossa Violaine é tudo açúcar.
É como se estivésseis chupando uma cereja, no momento de cuspir o caroço.
Mas, Mara amarga! Ela é dura como o ferro, e ácida como a casca.
E como se vossa Violaine já não fosse bastante bela,
Eis que vai ganhar também Combernon!
Que sabe ela fazer, a pateta? Qual das duas faz andar a carroça?
Ela se julga uma Santa Onzemilvirgens!
Mas eu sou Mara Vercors, que não gosta de injustiça e presunção.
Mara, que diz a verdade, e que exaspera as pessoas com isso!
Que elas se exasperem, bem me importa. Não há uma só que possa comigo!
Tudo comigo anda direito.
E eis que tudo é para ela, e nada para mim.
A MÃE — Tu terás também a tua parte.
MARA — Imaginem! As terras secas do alto, que precisam cinco bois para lavrar!
A MÃE — Mas produzem bastante...
MARA — Muito.
Cauda-de-raposa, dente-de-cão, sene e verbasco...
Poderei ao menos fazer chá...
A MÃE — Má! Tu sabes que não é verdade o que dizes!
Tu bem sabes que ninguém deseja prejudicar-te!
Mas tu, sim, é que foste sempre ruim.
Quando eras pequena gritavas sem que te batessem.
Nega-o, se podes, perversa!
Não é ela então a mais velha? Que tens tu a censurar-lhe, invejosa?
E a coitada sempre faz o que desejas.
Pois bem: ela se casará primeiro, e tu te casarás, tu também, mas depois!
Afinal, já não adianta mais discutir, pois o pai vai embora.
Que tristeza, meu Deus!
Já foi falar com Violaine e vai em busca de Jacques.
MARA — É mesmo. Vai logo. Vai já.
A MÃE — Onde?
MARA — Mãe, não sejas tola. Tu sabes bem que sou eu. Dize-lhe de uma vez que ela não se case com ele!
A MÃE — Não direi coisa alguma!
MARA — Repete-lhe apenas o que eu disse.
Que eu me matarei. Ouviste?


Ela a olha fixamente.


A MÃE — Ah!
MARA — Julgas que não?
A MÃE — Oh! Sim, meu Deus!
MARA — Vai então!
A MÃE — Ó
Cabeça!
MARA — Tu não terás culpa alguma.
Repete apenas o que eu disse.
A MÃE — E ele, quem te garante que vai querer casar-se contigo?
MARA — Não vai querer, é claro.
A MÃE — Pois bem...
MARA — Pois bem o quê?
A MÃE — Não penses que vou mandar Violaine fazer o que queres! Ao contrário!
Repetirei somente o que disseste, eu juro.
E ela não será tola de ceder.


Sai.




TERCEIRA CENA


Entram Anne Vercors e Jacques Hury. Este último empurra um homem de mau aspecto, mãos atadas às costas. Seguem-no dois servos: um carrega um feixe de lenha verde e outro, mais atrás, segura um cão pela coleira.


ANNE VERCORS, parando — Será possível?
JACQUES HURY — Isto mesmo! Dessa vez o apanhei em flagrante, de foice na mão!
Vim devagarinho por detrás e, de repente, zás!
Atirei-me sobre ele com todo o apetite,
Como a gente se atira sobre a lebre no tempo da colheita.
E vinte carvalhos novos, que tanto amavas, ao lado dele empilhados!
ANNE VERCORS — Por que não veio falar comigo? Eu lhe daria a lenha que precisa.
JACQUES HURY — A lenha que precisa é o cabo do meu chicote!
Não é por precisar, é por maldade, ruindade pura.
É dessa gente perversa que está sempre fazendo mal a alguém, à toa, simplesmente por gosto.
Mas este aí, vou cortar-lhe a orelha com a minha faca pequena!
ANNE VERCORS — Não.
JACQUES HURY — Deixa que o amarre pelos pulsos ao arado, diante da Porta Grande.
Com o rosto virado para os dentes, e o cão para o vigiar.
ANNE VERCORS — Também não.
JACQUES HURY — Que devo então fazer?
ANNE VERCORS — Mandá-lo de novo para casa.
JACQUES HURY — Com lenha?
ANNE VERCORS — E outro bocado que lhe darás. Vai buscá-lo depressa.
JACQUES HURY — Pai, isto não está direito.
ANNE VERCORS, piscando o olho — Tu poderás amarrá-lo entre os dois feixes para que não venha a perdê-los.
E isso o ajudará a atravessar o riacho de novo...
JACQUES HURY, soltando uma risada — Ah, senhor! Só tu mesmo terias uma ideia dessas!


Amarram a lenha às costas e ao peito do homem. Forma-se um simulacro de cortejo. Um dos servos vai à frente fingindo tocar trombeta. Os outros, atrás. O cão salta e late. Saem.


ANNE VERCORS — Eis que eu fiz justiça.
JACQUES HURY — E bem feita!
ANNE VERCORS — E és tu, Jacques, que a farás agora em meu lugar.
JACQUES HURY — Senhor, que estás a dizer?
ANNE VERCORS — Que és tu, Jacques, que a farás em meu lugar.
Foste tu que escolhi. És tu que ponho agora em meu lugar aqui.
JACQUES HURY — Entendes, ó Mãe, o que ele diz? Que está ele dizendo? Que está ele dizendo?
A MÃE, gritando com toda a força — Vai-se embora para a Palestina, para Jerusalém.
ANNE VERCORS — É certo. Parto agora mesmo.
JACQUES HURY — Tu partes? Jerusalém? Que quer dizer isso, meu Deus?
ANNE VERCORS — Isso mesmo que ouviste.
JACQUES HURY — Como? No momento do maior trabalho tu nos deixas?
ANNE VERCORS — Não é necessário em Combernon duas cabeças.
JACQUES HURY — Meu pai, eu não sou mais que teu filho.
ANNE VERCORS — Tu serás o pai em meu lugar.
JACQUES HURY — Não, não te entendo.
ANNE VERCORS — Vou-me embora. Recebe Combernon.
Como eu o recebi de meu pai, e este do seu.
E Radulfo, o Franco, o primeiro de nossa linhagem, de São Remígio de Rheims.
Que, por sua vez, de Genoveva de Paris
Recebera esta terra então pagã, horrível, só de árvores  bravas e espinhos venenosos.
Livre é portanto esta terra que recebemos do céu, pagando o dízimo, lá no alto, em Monsanvierge, a este voo de pombas arrulhantes um instante pousado.
Jamais aqui os animais adoecem; jamais os seios e as cisternas secam; o grão é duro como o ouro; rija, como o ferro, a palha.
E contra os assaltantes temos as armas, as muralhas de Combernon, e o Rei, nosso vizinho.
Recolhe a messe que eu semeei, assim como eu outrora enchi de terra os sulcos por meu pai traçados.
Ó bela profissão do agricultor, na qual o sol é nosso boi luzidio, nosso banqueiro a chuva, e Deus, hora por hora, nosso companheiro de trabalho, fazendo cada um o mais que pode!
Os outros esperam os seus bens dos homens, mas nós do próprio céu recebemos os nossos!
Cem por um, a espiga pelo grão, a árvore pelo galho.
Pois tal é a justiça de Deus conosco, tal a medida em que nos paga.
Empunha o cabo da charrua em meu lugar, liberta a terra desse pão que o próprio Deus desejou.
Dá de comer a toda a criatura, aos homens e aos animais, aos espíritos e aos corpos, e às almas, às almas imortais.
Vós outros, mulheres e servos, olhai. Eis aqui o filho de minha escolha, Jacques Hury.
Vou-me embora, mas ele fica em meu lugar. Obedecei-lhe.
JACQUES HURY — Seja feita, Pai, a tua vontade.
ANNE VERCORS — Violaine!
Minha filha nascida primeiro em lugar do filho que eu não tive!
Herdeira do nome pelo qual eu vou ser dado a outrem!
Quando tiveres um marido, não desprezes o amor de teu pai.
Pois ainda que quisesses, jamais lhe poderias pagar tudo o que te deu.
Tudo é igual entre o esposo e a esposa; o que um ignora do outro é aceito na fé.
Eis a mútua religião, eis a servidão pela qual o seio da mulher se enche de leite.
Mas o pai vê os filhos fora dele, e conhece o que dentro dele havia estado.
Conhece, minha filha, o teu Pai!
O amor do Pai
Não pede paga, e o filho não precisa ganhá-lo ou merecê-lo;
Como estava com ele antes do princípio, continua sendo seu bem,
Sua herança, seu recurso, seu título, sua honra e justiça!
Minha alma não se havia separado dessa outra por ela comunicada.
— E agora... a hora, a hora veio de nos separarmos.
VIOLAINE — Pai, não digas essa coisa cruel!
ANNE VERCORS — Jacques, tu és o homem que eu prefiro. Toma Violaine. Eu te dou a minha filha. Tira-lhe o meu nome.
Ama Violaine, porque é límpida como o ouro.
Ama Violaine, todos os dias de tua vida, como o pão que jamais nos enfara.
Ela é simples e obediente, ela é sensível e secreta.
Jamais lhe dês um desgosto. Cuida de Violaine com carinho.
Tudo aqui é teu, exceto a parte de Mara, de acordo com o que hei disposto.
JACQUES HURY — O que, meu pai? A tua filha, os teus bens...
ANNE VERCORS — Eu te dou tudo junto, enquanto são meus.
JACQUES HURY — Mas, quem sabe se ela me quer ainda?
ANNE VERCORS — Quem o há de saber?


Ela olha Jacques e, sem mover os lábios, diz que sim.


JACQUES HURY — Tu me aceitas, Violaine?
VIOLAINE — O pai o quer.
JACQUES HURY — E tu queres também?
VIOLAINE — Eu também quero.
JACQUES HURY — Violaine!
Como irei arranjar-me contigo?
VIOLAINE — Pensa enquanto é tempo ainda!
JACQUES HURY — Por Deus que eu te tomo, e não te largo mais!


Ele a toma pelas duas mãos.


Tenho-te bem segura, a mão e o braço,
 e tudo o que acompanha o braço.
Pais, vossa filha não mais vos pertence!
É minha só.
ANNE VERCORS — Pois bem. Estão casados, está pronto! Que dizes tu, ó Mãe?
A MÃE — Estou contente!


Ela chora.


ANNE VERCORS — Ela chora, coitada!
Seja. Eis que nos tomam nossas filhas e ficamos sozinhos.
A velha que se alimenta de um bocadinho de leite e um pedacinho de bolo.
E o velho de orelha cheia de pelos brancos como um miolo de alcachofra.
— Prepare-se o vestido de casamento!
— Filhos, não estarei presente às vossas bodas.
VIOLAINE — Pai!
A MÃE — Anne!
ANNE VERCORS — Vou partir neste instante.
VIOLAINE — Que é isso, Pai? Antes que estejamos casados?
ANNE VERCORS — É preciso. A mãe te explicará.


Entra Mara.


A MÃE — Quanto tempo vais ficar lá longe?
ANNE VERCORS — Não sei. Talvez pouco.
Em breve estarei de volta.


Silêncio.


VOZ DE CRIANÇA AO LONGE:
Compadre oriolo,
Que come a casca e deixa o miolo!


ANNE VERCORS — Na árvore de ouro e rosa o oriolo canta.
Que diz ele? Que a chuva desta noite foi como ouro para a terra.
Após os longos dias de calor... Que diz ele? Diz que é bom trabalhar.
Que diz ainda? Que o tempo está bom, que Deus é grande e que faltam ainda duas horas para que o meio-dia chegue!
Que diz ainda o passarinho? Que é hora
Do velho ir embora
E deixar os outros trabalharem...
— Jacques, deixo-te o que é meu. Protege estas mulheres.
JACQUES HURY — Como, tu partes?
ANNE VERCORS —Parece que ele não estava escutando...
JACQUES HURY — Mas já, agora?
ANNE VERCORS — Sim. Chegou a hora.
A MÃE — Tu não vais partir sem comer primeiro!


Durante esse tempo as criadas preparam a enorme mesa para a refeição do pessoal.


ANNE VERCORS, a uma criada — Olá, meu saco e meu chapéu!
Trazei-me sapatos e capa.
Não tenho tempo de almoçar convosco!
A MÃE — Anne, quanto tempo vais ficar por lá? Um ano? Dois? Mais de dois?
ANNE VERCORS — Um ano. Dois. Sim, isto mesmo.
Pela primeira vez te deixo, ó casa!
Combernon, sagrada habitação,
Vela sobre todas as coisas! Jacques estará em meu lugar.
Eis a lareira onde sempre há fogo, eis a mesa em que alimento o meu povo.
Tomai, todos, lugar. Antes de partir, vos parto o pão.


Toma o seu lugar na ponta da longa mesa, tendo a Mãe à direita. Todos os servos e servas estão de pé, cada um no lugar costumado. Ele toma o pão, faz-lhe uma cruz em cima, com a faca, corta-o, e o faz distribuir por Violaine e Mara. Guarda para si o último pedaço.
Depois, volta-se solenemente para a Mãe e abre os braços para ela.


Adeus, Elizabeth!
A MÃE, chorando, abraçada a ele — Tu não me verás de novo!
ANNE VERCORS, mais baixo ainda — Adeus, Elizabeth!


Volta-se para Mara e a fita gravemente, longamente, e estende-lhe a mão em seguida.


Adeus, Mara! Eu te peço que sejas boa!
MARA, beijando-lhe a mão — Adeus, meu pai!


Silêncio. Anne Vercors, de pé, olha para a frente, como se não visse a seu lado Violaine. Por fim, volta-se um pouco para ela, que lhe passa os braços em torno do pescoço, escondendo os soluços no seu peito.


ANNE VERCORS, como se não a visse, aos servidores: A vós todos, adeus!
Sempre fui justo para convosco. Quem disser o contrário está mentindo.
Não sou como os outros patrões. Elogio quando é preciso; quando é preciso, castigo.
Agora, que vou partir, procedei como se aqui estivesse.
Voltarei quando menos esperardes.


Estende a mão a todos.


Tragam-me o cavalo!


Silêncio.


Inclinando-se sobre Violaine, sempre abraçada a ele.


Que foi, meu bem?
Trocaste um pai por um marido.
VIOLAINE — Pobre de mim, meu Pai!


Ele lhe desfaz o abraço docemente.


A MÃE — Dize quando voltas.
ANNE VERCORS — Não o posso.
Será talvez de manhã. Talvez ao meio-dia, quando estiverdes comendo.
Talvez à noite, acordando, ouvireis na estrada o meu passo...
Adeus!


Ele sai.


Todos parecem petrificados. Jacques Hury toma a mão de Violaine. Ouve-se, ao longe, o cuco.

(extraído de: CLAUDEL, Paul. O anúncio feito a Maria: versão definitiva para a cena. Tradução de Dom Marcos Barbosa, O.S.B. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1968. primeiro ato, p. 39-66)


1º bimestre, atividade 3
24/2/2012

Faça um resumo dos acontecimentos apresentados em cada cena, indicando quem participa da cena, o que parecia ser a expectativa natural da história e o que ocorre para quebrar essa expectativa. Se quiser, pode usar pequenos trechos das falas, entre aspas, para exemplificar. Escreva de 5 a 10 linhas para cada cena.

Formato: fonte Times New Roman, corpo 12, entrelinha 1,5.
Salve o arquivo como 8EF_103_Seu nome e envie-o anexado por e-mail ao professor, com o assunto 8EF.