O anúncio feito a Maria
PAUL CLAUDEL
SEGUNDO ATO
A mesma sala.
VOZ DE MULHER NO CÉU, do alto da mais alta torre de Monsanvierge:
Salva Rainha, mãe de misericórdia,
Vida, doçura,
Esperança nossa,
Salve...
Longa pausa. A cena permanece alguns instantes vazia.
PRIMEIRA CENA
A Mãe e Mara entram.
MARA — Que foi que ela disse?
A MÃE — Eu lhe falei como por acaso. Tu bem vês que ela perdeu toda a alegria!
MARA — Nunca falou tanto como agora!
A MÃE — Não ri mais, porém. E isso me corta o coração!
Talvez seja porque Jacquinho está fora; mas volta hoje.
— E, além disso, o pai partiu.
MARA — Foi só o que lhe disseste?
A MÃE — Foi só, sem nada mudar, como me fizeste repetir:
Que Jacquinho e tu, tu o amas, etc.
Mas que dessa vez é preciso não se fazer de tola e não se deixar levar, isso eu acrescentei e o repeti duas ou três vezes.
Romper, contra a vontade do teu pai, esse casamento que já está como feito!
Que não iria o povo dizer?
MARA — E ela, que respondeu?
A MÃE — Ela desatou a rir, e eu... eu desatei a chorar.
MARA — Eu a farei rir, se farei!
A MÃE — Não era daquele riso que eu amo, o riso de minha filhinha. E desatei a chorar.
E lhe dizia: “Não, não, Violaine, minha filha!”
E ela, então, sem falar, fez um sinal com a mão: queria ficar sozinha.
Ah! como os filhos nos fazem sofrer!
MARA — Psiu!
A MÃE — Que foi?
Tenho remorso do que fiz.
MARA — Ora! Não a estás vendo lá no fundo? Ela caminha por detrás das árvores.
Agora sumiu.
Silêncio. Ouve-se atrás da cena um toque de corneta.
A MÃE — Jacquinho está chegando. Juro que é o som da sua corneta!
MARA — Vamos embora daqui.
Elas saem.
SEGUNDA CENA
Jacques Hury entra, e olha em torno de si.
JACQUES HURY — Não a vejo.
E no entanto ela mesma mandara dizer
Que desejava ver-me esta manhã
Aqui.
Entra Mara. Caminha para Jacques e, a seis passos dele, faz uma cerimoniosa reverência.
JACQUES HURY — Bom dia, Mara.
MARA — Tua criada, Senhor!
JACQUES HURY — Que brincadeira é esta?
MARA — Não te devo eu prestar obediência?
Não és o senhor aqui, tendo apenas Deus acima de si, como o próprio Rei de França e o Imperador Carlos Magno?
JACQUES HURY — Caçoa quanto quiseres, que isto não deixa de ser exato. Ó Mara, que bom! Como eu sou feliz, cara irmã!
MARA — Não me chames cara irmã! Sou tua criada, já que é preciso.
Homem de Braine, filho da terra de servos, não sou tua irmã, não és do nosso sangue!
JACQUES HURY — Sou o esposo de Violaine.
MARA — Não o és ainda!
JACQUES HURY — Amanhã, o serei.
MARA — Quem poderá garantir?
JACQUES HURY — Mara, pensei bastante
E creio que foi um sonho teu a história que me contaste outro dia.
MARA — Que história?
JACQUES HURY — Não te faças de tola.
A história do pedreiro, e esse beijo clandestino na aurora...
MARA — É possível. Com certeza eu vi mal. Tenho bons olhos, no entanto.
JACQUES HURY — E corre por aí que o homem está leproso.
MARA — Jacques, eu não gosto de ti.
Mas tens o direito de saber tudo. É preciso que tudo seja claro e límpido em Monsanvierge, posta em evidência sobre todo o Reino.
JACQUES HURY — Tudo será tirado a limpo agora mesmo.
MARA — Tu és esperto, e coisa alguma te escapa.
JACQUES HURY — Percebo ao menos que não gostas nada de mim.
MARA — Que dúvida? Não era o que eu dizia?
JACQUES HURY — Nem todos aqui, porém, têm o mesmo sentimento!
MARA — É de Violaine que falas? Eu me envergonho dessa menina.
É vergonhoso entregar-se inteirinha,
Alma, carne, pele, coração; o interior, o exterior, a raiz!
JACQUES HURY — Eu sei que ela é, ó Mara, inteiramente minha.
MARA — Pois sim.
De que maneira diz isto! Como está seguro das coisas que são dele!
Brainard de Braine!
Só são da gente as coisas que fizemos, ou conquistamos, ou ganhamos um dia.
JACQUES HURY — Mas eu, Mara, tu não me desagradas; não tenho nada contra ti.
MARA — Nem também contra tudo que é daqui...
JACQUES HURY — Não tenho culpa de não seres homem e de teus bens passarem para mim!
MARA — Como está orgulhoso e contente!
Olha que já não pode segurar o riso!
Vamos! Ri, não faças cerimônia!
Ele ri.
Conheço muito bem a tua cara.
JACQUES HURY — Estás é zangada por não poder afligir-me.
MARA — Como outro dia, enquanto o pai falava, rindo de um olho e chorando seco do outro.
JACQUES HURY — Não sou acaso o senhor de um belo domínio?
MARA — Depois, o pai estava velho, não é verdade? E tu sabes, decerto, um pouquinho mais que ele.
JACQUES HURY — Cada homem tem o seu tempo.
MARA — É verdade, Jacques, tu és um belo rapaz.
Ei-lo vermelho agora!
JACQUES HURY — Não me amofines.
MARA — Em todo caso, é pena!
JACQUES HURY — Pena o quê?
MARA — Adeus, esposo de Violaine! Adeus, senhor de Monsanvierge!
JACQUES HURY — Far-te-ei ver que o sou!
MARA — Recebe então o espírito do lugar, Brainard de Braine!
Ele julga, como um camponês, que tudo é seu; irá ver o contrário.
Julga, como um camponês, que é só dele o que há de mais alto no centro do seu pequeno campo achatado!
Mas Monsanvierge é de Deus, e o senhor de Monsanvierge é de Deus, e o senhor de Monsanvierge é homem de Deus, que não tem nada de seu,
Tendo recebido tudo de outro.
Eis a lição que nos dão aqui, de pai a filho! Não há posto mais importante que o nosso!
Recebe o espírito dos teus senhores!
Falsa saída.
Ah!
Violaine, que eu encontrei,
Encarregou-me de um recado.
JACQUES HURY — Por que não disseste logo?
MARA — Espera-te junto à fonte.
TERCEIRA CENA
JACQUES HURY — Ave, Violaine, minha noiva entre os ramos em flor!
Violaine está do lado de fora, invisível.
Como estás linda!
VIOLAINE — Jacques! Bom dia, Jacques!
Por que estiveste tanto tempo ausente?
JACQUES HURY — Era preciso que eu vendesse tudo, que me desembaraçasse de todas as coisas, para ser o homem de Monsanvierge somente
E o teu.
— Que vestido maravilhoso é este?
VIOLAINE — Já te esqueceste? Eu o vesti por tua causa. Já te falara dele...
É o hábito das monjas de Monsanvierge, que elas usam no coro, e que é quase, fora o manípulo,
A dalmática do diácono que têm o privilégio de vestir, algo sacerdotal, hóstias que são,
E que as mulheres de Combernon têm a sorte de poder usar duas vezes:
Primeiro, no dia do casamento;
Ela entra.
Segundo, no dia da morte.
JACQUES HURY — Então é verdade, Violaine? É hoje o dia do nosso casamento?
VIOLAINE — Jacques, ainda é tempo, não estamos ainda casados!
Se apenas quiseste fazer o gosto de papai, é tempo ainda de voltar atrás, pois é de nós que se trata. Dize uma palavra somente, e eu não ficarei, Jacques, sentida contigo.
Pois não há ainda promessa definitiva entre nós dois, e não sei se te agrado ainda.
JACQUES HURY — Como estás bela, Violaine! E como é belo o mundo em que estás,
A parte que me foi reservada!
VIOLAINE — És tu, Jacques, o que há de melhor na terra!
JACQUES HURY — É verdade que tu queres ser minha?
VIOLAINE — Sim, é verdade. Bom dia, meu bem amado! Eu te pertenço.
JACQUES HURY — Bom dia, minha mulher! Bom dia, doce Violaine!
VIOLAINE — Como são boas, de ouvir, essas coisas...
JACQUES HURY — É preciso nunca mais deixar de estar aqui! Dize que não deixarás jamais de ser a mesma, e o anjo que Deus me enviou!
VIOLAINE — Nunca o que é meu deixará de ser teu, ó Jacques!
JACQUES HURY — E eu Violaine...
VIOLAINE — Não digas nada. Nada te peço. Estás aqui. Isso me basta.
Bom dia, Jacques!
Ah! esta hora é bela e não peço nenhuma outra.
JACQUES HURY — Amanhã, será mais belo ainda!
VIOLAINE — Amanhã, terei deixado esta veste...
JACQUES HURY — Mas estarás tão perto de mim que não mais te verei.
VIOLAINE — Bem perto, muito perto de ti!
JACQUES HURY — Esta Rainha, amanhã, à vista de todos, eu a tomarei entre os braços.
VIOLAINE — Sim, Jacques, não a deixes partir!
Ah, toma contigo a tua filhinha, que não a possam achar, fazer-lhe mal algum!
JACQUES HURY — E não terás saudade então, nesse momento, do linho e do ouro de agora?
VIOLAINE — Não podia eu fazer-me bela, Jacques, apenas por uma pequena, por uma pobre hora?
JACQUES HURY — Sim, meu belo lírio, que eu não me canso de considerar como um astro, em todo o seu esplendor!
VIOLAINE — Ó Jacques, dize ainda uma vez que me achas bela!
JACQUES HURY — Eu te acho bela, Violaine.
VIOLAINE — A mais bela entre as mulheres, e as outras não são nada aos teus olhos?
JACQUES HURY — Nada, Violaine.
VIOLAINE — E me amas unicamente, como o esposo mais terno ama o pobre ser que lhe foi dado?
JACQUES HURY — Sim, Violaine.
VIOLAINE — E que se dá a ele de todo o coração, podes crê-lo, sem nada reservar para si?
JACQUES HURY — E tu, Violaine, não crês, então, em mim?
VIOLAINE — Eu creio em ti, Jacques! Eu creio em ti. Eu creio.
Tenho confiança em ti, meu bem amado.
JACQUES HURY — Por que, então, este ar de susto e de medo?
Mostra-me a mão esquerda.
Ela obedece.
Meu anel não está mais no teu dedo.
VIOLAINE — Explicarei tudo agora mesmo, e ficarás tranquilo.
JACQUES HURY — Já o estou, Violaine. Confio em ti.
VIOLAINE — Sou mais que um anel, ó Jacques. Sou um grande tesouro.
JACQUES HURY — Eis que duvidas de mim outra vez.
VIOLAINE — Jacques! Afinal, não há mal nenhum em que eu te ame.
É a vontade de Deus e de meu pai.
Tu é que terás de cuidar de mim. E quem sabe serás mesmo capaz de defender-me, capaz de preservar-me!
Basta que eu me dê a ti completamente.
E o resto é contigo apenas.
JACQUES HURY — É assim que te entregas a mim, ó minha flor-de-sol?
VIOLAINE — Sim, Jacques, é assim.
JACQUES HURY — Quem te arrancará, então, dos meus braços?
VIOLAINE — Ah! como o mundo é grande e estamos nele sozinhos!
JACQUES HURY — Filhinha, eu sei que teu pai partiu.
E eu também não tenho ninguém comigo para dizer-me o que devo fazer, aquilo que é bom e que é mau.
É preciso que me ajudes, Violaine...
VIOLAINE — Meu pai me abandonou.
JACQUES HURY — Mas eu, Violaine, eu fiquei.
VIOLAINE — Nem minha mãe me ama, nem minha irmã, sem que eu lhes tenha feito mal algum.
E não me resta senão este grande homem terrível que eu não conheço.
Ele faz o gesto de tomá-la nos braços.
Ela o afasta vivamente.
VIOLAINE — Jacques. Não toques em mim!
JACQUES HURY — Sou, acaso, um leproso?
VIOLAINE — Jacques, eu quero falar-te. Ah! como é difícil!
Não me faltes, ó Jacques, pois eu só tenho a ti!
JACQUES HURY — Mas quem te quer, Violaine, fazer mal?
VIOLAINE — Fica sabendo, pois, o que vais fazer tomando-me por mulher!
Deixa-me falar-te humildemente, Jacques, meu senhor.
Que vais receber minha alma e meu corpo em depósito das mãos de Deus e de meu pai que os fizeram.
Considera o dote que eu te trago, que não é como o das outras moças,
Mas essa montanha santa, noite e dia em oração diante de Deus, como um altar fumegante.
Lâmpada sempre acesa que temos a tarefa de nutrir com óleo!
E a testemunha de nosso casamento não é homem algum, mas esse Senhor de que temos o nosso feudo.
O Todo-Poderoso, Deus dos Exércitos.
E não é o sol de julho que nos ilumina, mas o esplendor da sua face.
JACQUES HURY — Não, Violaine, eu não sou clérigo, nem monge, nem beato.
Não sou o sacristão e o converso de Monsanvierge.
Mas o cargo que tenho, hei de cumpri-lo:
Alimentar essas aves em coro,
E encher o cesto que desce do céu cada manhã.
Está escrito. Está direito.
Compreendi-o bem, meti-o na cabeça e não é bom pedir mais nada.
É preciso não me pedir para compreender o que me excede, e porque essas mulheres se emparedaram naquele pombal do alto.
Aos celestes o céu, aos terrestres a terra.
Pois o trigo não cresce sozinho e é preciso um lavrador ao daqui.
E isto, eu posso dizê-lo sem gabar-me que o sou, e que ninguém me ensinará nada nesse ponto, nem mesmo teu pai talvez.
Porque era velho e apegado às suas ideias.
A cada um seu lugar, eis a justiça.
E teu pai, dando-te a mim, junto com Monsanvierge,
Sabia o que fazia, e que era justo.
VIOLAINE — Mas eu, Jacques, eu não te amo porque isto seja justo.
E mesmo que não fosse, te amaria ainda, e mais.
JACQUES HURY — Não compreendo, Violaine.
VIOLAINE — Jacques, não me forces a falar!
Tu me amas tanto, e não posso fazer-te mal!
Deixa-me, não pode haver justiça entre nós dois, mas somente fé e caridade.
Afasta-te de mim enquanto é tempo.
JACQUES HURY — Não compreendo, Violaine.
VIOLAINE — Meu bem amado, não me forces a confiar-te o meu grande segredo.
JACQUES HURY — Um segredo, Violaine?
VIOLAINE — Tão grande, que tudo está consumado, e não me pedirás mais para desposar-te.
JACQUES HURY — Não compreendo.
VIOLAINE — Não sou bastante bela agora, Jacques? Que desejas ainda?
Que se deseja de uma flor,
Senão que seja bela e perfumada um minuto, pobre flor, antes que tudo acabe?
A flor é curta, mas a alegria que ela deu, esse minuto,
Não é coisa que tenha início ou fim.
Não sou eu bastante bela? Falta-me alguma coisa?
Ah! vejo teus olhos, meu amado! Haverá alguma coisa em ti nesse momento que não me ame ou que duvide de mim?
Será que a minha alma não basta?
Toma, Jacques, a minha alma, que ainda estou aqui; aspira a minha alma até as raízes profundas.
Basta um momento para morrer, e a morte mesma, um no outro,
Não nos irá, mais do que o amor, matar, — e terá o que está morto precisão de viver?
Que queres tu fazer de mim ainda?
Foge, afasta-te! Por que queres desposar-me? Por que queres tomar
O que só a Deus pertence?
A mão de Deus foi colocada sobre mim e tu não podes defender-me.
Não seremos jamais, ó Jacques, marido e mulher neste mundo!
JACQUES HURY — Violaine, que palavras estranhas são essas, tão ternas, tão amargas? Por que funestos e insidiosos caminhos me queres conduzir?
Creio que queres experimentar-me, zombar de mim, homem simples e rude.
Ah! Violaine, como estás bela assim, e como tenho medo no entanto de ver-te nesse vestido terrível!
Que não é um adorno de mulher, mas o traje do sacrificante no altar.
A dalmática do que ajuda ao sacerdote, deixando o flanco aberto e os braços livres!
Ah! eu bem vejo que é o espírito de Monsanvierge que vive em ti, e a flor suprema é fora do jardim fechado!
Ah! não voltes para mim esse rosto que não é mais deste mundo, que não é mais de Violaine.
Muitos anjos, já, ajudam no céu à missa!
Tem compaixão de mim, que sou um homem sem asas, que me alegrava com o companheiro que Deus me dera, e que escutava suspirar, a cabeça ao meu ombro!
Doce pássaro, o céu é belo; mas é belo também ser cativado!
O céu é belo, mas é belo também e digno de Deus encher o coração de um homem sem nada deixar vazio!
Não me condenes, oh! não, à privação do teu rosto!
É claro que eu sou um homem sem luz e sem beleza, mas eu te amo, meu anjo, minha rainha e querida!
VIOLAINE — Então foi inútil que eu te advertisse, e queres mesmo tomar-me mulher, e não te afastarás jamais do teu propósito?
JACQUES HURY — Nunca, Violaine.
VIOLAINE — Quem tomou uma esposa, não são mais que uma carne, e nada, nada os separa.
JACQUES HURY — Nada, Violaine.
VIOLAINE — Tu o queres!
Não convém mais então que oculte nada e guarde comigo mais tempo
O grande, inefável segredo.
JACQUES HURY — Segredo, Violaine?
VIOLAINE — E tão grande, Jacques, em verdade,
Que o teu coração ficará farto
E nada mais me pedirá,
E não seremos jamais um do outro arrancados.
Uma comunicação tão profunda
Que nem a vida, nem o inferno, nem o céu mesmo, ó Jacques,
Não a farão jamais cessar, e esse momento
Em que te foi revelada
Na fornalha desse sol terrível aqui presente que nos impede quase de ver a face do outro...
JACQUES HURY — Fala, Violaine, fala!
VIOLAINE — Mas dize-me ainda uma vez que me amas.
JACQUES HURY — Eu te amo!
VIOLAINE — E que sou tua mulher e o teu único amor!
JACQUES HURY — Minha mulher, meu único amor!
VIOLAINE — Conhece o fogo que me devora;
Conhece a carne que a tua alma adora,
Chega perto de mim!
Movimento.
Mais perto! Mais perto ainda. Bem a meu lado. Senta-te nesse banco. Assim.
Silêncio.
E dá-me a tua faca.
Ele entrega-lhe a faca. Ela faz uma incisão no linho da túnica, bem no flanco, em cima do coração e debaixo do seio esquerdo. E inclinada sobre ele, afastando com os dedos a abertura, mostra-lhe a carne em que aparece, evidente, a primeira mancha da lepra. Silêncio.
JACQUES HURY, desviando um pouco o rosto. — Dá-me a faca.
Violaine, não estarei enganado? Que flor é esta de prata na tua carne blasonada?
VIOLAINE — Não, Jacques, não te enganaste.
JACQUES HURY — É o mal, Violaine, é o mal?
VIOLAINE — Sim, Jacques, é o mal.
JACQUES HURY — A lepra!
VIOLAINE — Tu és difícil de convencer.
Precisas ver para acreditar.
JACQUES HURY — E que lepra é a mais temível,
A da alma ou a do corpo?
VIOLAINE — Não posso dizer nada da outra; só conheço a do corpo, que é um mal bem grande.
JACQUES HURY — Então tu não conheces a outra, ó renegada?
VIOLAINE — Não sou uma renegada.
JACQUES HURY — Renegada. Infame.
Renegada na alma e no corpo!
VIOLAINE — Então, já não me pedes mais, Jacques, para casar contigo?
JACQUES HURY — Não zombes de mim, ó mulher do demônio!
VIOLAINE — Esse o grande amor que me tinhas...
JACQUES HURY — Esse o lírio que eu elegera...
VIOLAINE — Esse o homem que ficou no lugar de meu pai...
JACQUES HURY — Esse o anjo que Deus me havia dado...
VIOLAINE — “Ah, quem nos arrancará jamais um do outro? Eu te amo, Jacques, e tu me defenderás, e nada terei de temer nos teus braços.”
JACQUES HURY — Não zombes de mim com essas palavras terríveis!
VIOLAINE — Dize:
Faltei eu à minha palavra? Não estás farto, agora, da minha carne?
Esquecerás de agora em diante a tua Violaine, e o coração que te mostrou?
JACQUES HURY — Afasta-te de mim.
VIOLAINE — Está bem. Estou bastante longe, Jacques, e não tens nada a temer.
JACQUES HURY — Longe, longe,
Menos longe do que estiveste do teu vil leproso,
Da sua carne corrompida!
VIOLAINE — É de Pedro de Craon que tu falas?
JACQUES HURY — É dele que falo, que beijaste na boca.
VIOLAINE — E quem foi que te disse?
JACQUES HURY — Mara viu com seus olhos.
E contou-me tudo como era seu dever.
E eu, miserável, não queria acreditar!
Vamos, confessa! Confessa logo! Confessa que é verdade!
VIOLAINE — É verdade, Jacques.
Mara sempre diz a verdade.
JACQUES HURY — E é verdade que o beijaste no rosto?
VIOLAINE — Sim. É verdade.
JACQUES HURY — Ó maldita, o fogo do inferno terá assim tanto gosto para o teres em vida cobiçado?
VIOLAINE, muito baixo — Não maldita,
Mas doce, doce Violaine!
JACQUES HURY — E ousas negar que esse homem te tenha possuído?
VIOLAINE — Não nego nada.
JACQUES HURY — Mas eu te amo ainda, Violaine! Dize qualquer coisa, se nada tens a dizer; eu tudo acreditarei! Fala, eu te imploro! Dize que não é verdade!
VIOLAINE — Eu não posso tornar-me inteiramente negra num segundo. Jacques, mas dentro de alguns meses, alguns meses ainda,
Não mais me conhecerás!
JACQUES HURY — Dize-me que tudo isso não é verdade.
VIOLAINE — Mara diz sempre a verdade, e essa flor também, que no meu flanco viste.
JACQUES HURY — Adeus, Violaine.
VIOLAINE — Adeus, Jacques.
JACQUES HURY — Que vais fazer, desgraçada?
VIOLAINE — Deixar essas roupas. Esta casa.
Cumprir a lei. Mostrar-me ao sacerdote.
Partir para...
JACQUES HURY — Para onde?
VIOLAINE — ...O lugar reservado à gente de minha espécie.
O leprosário dos rochedos.
JACQUES HURY — Quando irás?
VIOLAINE — Hoje mesmo. Esta noite.
Longo silêncio.
Não há outra coisa a fazer.
JACQUES HURY — É preciso evitar o escândalo.
Vai tirar essa veste e pôr um vestido de viagem, e eu te direi o que convém fazer.
Saem os dois.
QUARTA CENA
A sala do primeiro ato. Toda esta cena pode ser representada de modo que o público veja os gestos, mas não entenda as palavras.
MARA, entrando rapidamente — Eles vêm cá. Creio que o casamento está rompido.
Estás ouvindo?
Não vás dizer nada.
Fica quieta!
A MÃE — Como?
Ó malvada, ó perversa, tu obtiveste o que querias!
MARA — Deixa. Passa logo.
Aliás,
Não adiantaria nada. Pois é comigo
Que ele deve casar, e não com ela. No fim de contas é melhor para ela. Tem de ser assim. Estás ouvindo?
Fica quieta!
A MÃE — Quem te disse isto?
MARA — Será que eu tenho necessidade que me digam as coisas? Vi tudo pela cara dos dois. Apanhei-os no auge. Compreendi tudo num momento.
Fiquei com pena de Jacques, coitado!
A MÃE — Arrependo-me do que disse.
MARA — Tu não disseste nada. Não sabes nada. Fica quieta.
E se eles te disserem algumas coisa, seja o que for,
Concorda com eles, faze o que quiserem.
Não há mais jeito.
A MÃE — Espero que tudo se arranje!
QUINTA CENA
Entra Jacques Hury e depois Violaine, toda de preto, vestida como quem vai viajar.
A MÃE — Que houve, Jacques? Que houve, Violaine?
Por que puseste essa roupa como se fosses partir?
VIOLAINE — Eu vou partir também.
A MÃE — Partir? Partir tu também?
Jacques, que se passou entre ambos?
JACQUES HURY — Nada,
Mas sabes que fui ver minha mãe em Braine e acabo de chegar.
A MÃE — E daí?
JACQUES HURY — Sabes que minha mãe é velha.
E disse que quer ver e abençoar a nora
Antes de morrer.
A MÃE — Não poderá esperar pelo casamento?
JACQUES HURY — Não pode. Está doente.
E esse tempo de colheita também, onde se tem tanto a fazer,
Não é tempo de casamento.
Conversamos sobre isso tudo agora mesmo, Violaine e eu, muito amigavelmente,
E decidimos que era melhor esperar
O outono.
Até então, ficará em Braine, em casa de mamãe.
A MÃE — Tu estás de acordo, Violaine?
VIOLAINE — Sim, minha mãe.
A MÃE — Mas o quê? Tu queres partir hoje mesmo?
VIOLAINE — Esta noite.
JACQUES HURY — Eu irei acompanhá-la.
O tempo urge, e também o trabalho nesse mês de feno e de colheita. Já fiquei tempo demais ausente.
A MÃE — Fica, Violaine. Não te vás de casa, tu também!
VIOLAINE — É por pouco tempo, mamãe!
A MÃE — Pouco tempo, tu prometes?
JACQUES HURY — Pouco tempo. E quando vier o outono,
Ei-la de novo conosco, para não mais nos deixar.
A MÃE — Ah! Jacques, por que a deixas partir?
JACQUES HURY — Imaginas que não seja duro para mim?
MARA — Mãe, o que eles dizem é razoável.
A MÃE — É duro ver minha filha deixar-me.
VIOLAINE — Não fiques triste, mamãe!
Não estou certa de tua afeição, da de Mara, da de Jacques, meu noivo?
Não é verdade, Jacques? Ele é meu como sou dele, e nada nos pode separar. Olha-me, caro Jacques. Vê como ele está chorando por me ver partir!
Mas não é hora de chorar, mamãe! Não sou jovem e bela, amada por todos?
Papai partiu, é verdade, mas deixou-me o mais terno esposo, o amigo que jamais me deixará sózinha!
Não é hora de chorar, mas de alegrar-se.
Ah, querida mãe, como a vida é bela e como sou feliz!
MARA — E tu, Jacques, que dizes? Não tens um ar muito contente...
JACQUES HURY — Não é natural que eu esteja triste?
MARA — Ora! Uma separação de meses...
JACQUES HURY — Mas longa demais para o meu amor.
MARA — Escuta, Violaine, como ele falou bonito!
Mas, que é isto, minha irmã? Tu também estás triste? Sorri-me com esta boca tão bela. Ergue esses olhos azuis que nosso pai tanto amava. Olha, Jacques! Repara como tua mulher é bela quando sorri!
Nunca te tomarão Violaine! Como ficaria triste a tua casa sem o pequeno sol que a ilumina?!
É preciso amá-la muito, homem sem coração! Dize-lhe que tenha coragem!
JACQUES HURY — Coragem, Violaine!
Tu não me perdeste. Não estamos um para o outro perdidos!
Vê que não duvido do teu amor; duvidarias então do meu?
Será que duvido de ti, Violaine? Que não te amo, Violaine?
Que não estou certo, seguro de ti, Violaine?
Falei de ti à minha mãe; imagina como será feliz de ver-te.
É duro deixar a casa dos pais. Mas estarás num abrigo seguro, que ninguém violará.
Nada terão a temer, Violaine, o teu amor e a tua inocência.
A MÃE — São palavras bem amáveis.
E no entanto há nelas, e naquelas que acabas de dizer, minha filha,
Qualquer coisa de estranho que me aflige.
MARA — Nada vejo de estranho, minha mãe!
A MÃE — Violaine! Se te causei desgosto há pouco, minha filha,
Esquece o que eu te disse.
VIOLAINE — Não me deste desgosto algum, minha mãe.
A MÃE — Deixa-me então abraçar-te.
Ela abre os braços.
VIOLAINE — Não, mamãe!
A MÃE — O quê?
VIOLAINE — Não.
MARA — Violaine, isso é feio! Tens medo que te toquemos? Por que nos tratas assim como leprosos?
VIOLAINE — Eu fiz um voto.
MARA — Que voto?
VIOLAINE — Que ninguém me toque.
MARA — Até voltares?
Silêncio. Ela abaixa a cabeça.
JACQUES HURY — Deixa Violaine em paz.
Tu vês que ela sofre.
A MÃE — Afastai-vos um pouco.
Eles se afastam.
Adeus, Violaine!
Tu não me enganas, minha filha, tu não enganas a mãe que te fez.
O que eu te disse é duro, mas vê que eu sofro bastante, e sou velha.
Tu és moça, tu esquecerás.
Meu marido partiu, e eis que agora minha filha me dá as costas.
A pena que a gente sofre não é nada, mas a que causamos aos outros
Nos impede de comer.
Pensa nisto, meu cordeiro sacrificado, e dize a ti mesma: eu não fiz mal, assim, a ninguém.
Aconselhei-te o que julguei melhor. Não me queiras mal, Violaine, salva tua irmã; será preciso deixá-la perder-se?
O bom Deus está contigo, é a tua paga.
É tudo. Não mais verás o meu rosto enrugado. Deus esteja contigo!
E se tu não me queres abraçar, posso ao menos abençoar-te, doce, doce Violaine!
VIOLAINE — Dá-me, dá-me a tua bênção, mamãe!
Ajoelha-se, e a Mãe faz o sinal da cruz sobre ela.
JACQUES HURY, voltando — Vem, Violaine, é hora.
MARA — Vai, e reza por nós.
VIOLAINE, gritando — Eu te dou os meus vestidos, Mara, e tudo o que era meu!
Não tenhas medo, não toquei em nada.
Não entrei sequer no meu quarto de casada.
— Ah, o meu pobre vestido de noiva, como era belo!
Abre os braços, como buscando apoio. Todos permanecem afastados. Sai, cambaleando, acompanhada de Jacques.
(extraído de: CLAUDEL, Paul. O anúncio feito a Maria: versão definitiva para a cena. Tradução de Dom Marcos Barbosa, O.S.B. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1968. segundo ato, p. 67-97)