Leia a seguir trechos destacados de um artigo sobre Euclides da Cunha e Os sertões e, em seguida, identifique conexões entre as ideias desses trechos e as duas passagens de Os sertões reproduzidas na sequência.
CRÍTICA
[...] Sabe-se que a visão de mundo do homem que chegou no alto-sertão da Bahia, com a incumbência de noticiar para um periódico sulista os derradeiros momentos do massacre dos sertanejos de Antonio Conselheiro, estava profundamente mergulhada nos pressupostos e preconceitos advindos do credo cientificista, isto é: evolucionismo, determinismos climático e biológico e, de uma forma mais geral, do positivismo. Por esse caminho, o conceito de sertão era compreendido da forma mais pejorativa possível, desqualificando a terra e a humanidade a ela relacionada, reconhecendo neles a impossibilidade de qualquer desenvolvimento rumo à civilização. Euclides, como boa parte dos intelectuais contemporâneos, compartilhava destas ferramentas mentais que possibilitavam uma maior compreensão da realidade do País. O sertão era percebido como território da barbárie, tal como o conceberam, na primeira metade do século, a elite imperial e o olhar estrangeiro, marcadamente ilustrado. A ideia de sertão sintetizava a representação do outro indesejado e distante, símbolo daquilo que não se poderia conceber como nacional. [...]
Todavia, a opção pelo sertão, convivendo com a crença na civilização e no progresso, tornava a consciência do homem angustiada e sombria, e projetava reflexões que não poderiam deixar de expressar tais tensões. [...]
Sem sombra de dúvida, ecoava nesse momento no pensamento de Euclides um clima de devoção à nação republicana, lutando contra a monstruosa ameaça do núcleo monarquista dos fanáticos sertanejos. Sabe-se, porém, que a imagem de Canudos, esse monstro terrível foi na verdade uma construção feita e alardeada através da imprensa das capitais litorâneas, principalmente a partir da pregação dos devotos jacobinos. Raoul Girardet expôs perfeitamente o poder das mitologias políticas que atuam no plano do alarde conspiratório, em que imagens e informações são construídas e manipuladas por grupos interessados no controle do imaginário. O arraial do Conselheiro seria a tradução da barbárie, a perfeita encarnação do mal. Neste sentido, o pensamento de Euclides se alinha com a ideia de sertão que se tinha naquele momento ao nível do senso comum. Daí, portanto, a importância de Euclides da Cunha, pois seu livro é, acima de tudo, profundo exame de consciência, não só individual, mas possivelmente coletiva. [...]
Nos três pontos em que a narrativa do livro está encadeada, percebemos tacitamente as construções imaginárias, inicialmente de uma espacialidade nacional, em seguida o estabelecimento de um tipo étnico que encarnasse a nação, o sertanejo, e enfim, no momento da luta, o conflito mais grave que é o reconhecimento de que, grosso modo, a República, elemento que até então simbolizava de alguma maneira a ideia de nacionalidade, na cabeça do jornalista Euclides da Cunha presente no ocaso da tragédia, acabou sendo o algoz dos que são os primevos e essenciais brasileiros. [...]
O certo é o seguinte: se pelo caminho da ciência do século XIX, Os Sertões encontra-se preso às amarras de uma visão de mundo marcada por avaliações negativas sobre a terra e o homem do Brasil, pelo caminho do simbolismo mítico, com um substrato essencialmente romântico mesmo não declarado, mas parte integrante do imaginário de sua geração, ele supera os preconceitos e institui novas interpretações às teorias cientificistas vulgarizadas na época. O sertanejo é forte porque conjuga na sua constituição histórica alguns fatores singulares: a reação ao meio arredio, a purificação existencial, resultado do martírio secular da terra e do isolamento de sua formação sócio-histórica e, o mais importante de tudo, encarna, de certa forma, como fruto de uma concepção romântica presente no livro, o estereótipo do bom selvagem rousseauniano. Os Sertões, mais do que um livro em si, é o melhor exemplo da consciência partida de uma geração na busca de sua identidade de povo e nação. Se em 1897 Euclides da Cunha chegou ao arraial de Canudos como mais um repórter, preso às visões civilizadas do litoral sobre o sertão, o confronto com a trágica realidade dilacerou internamente o escritor, transformando o livro em um manifesto a favor da memória dos heróicos seguidores do Conselheiro, afirmando a existência de uma brasilidade sertaneja, como algo essencial à formação histórica do Brasil. [...]
Euclides foi alguém que depositou todas as suas esperanças na razão e na ciência do século de Marx, Comte, Darwin e Spencer; e quis, com estas certezas, interceder e transformar a realidade do País, fazendo com que trilhasse o rumo do progresso e da civilização. Mas sabemos que seus sonhos e esperanças mais concretas se evaporaram como água em pleno ar. Para ele conviver com o fardo dessa derrota na consciência foi algo extremamente dramático. O grande filósofo e historiador das religiões Mircea Eliade, numa passagem extremamente feliz, afirmou que “um homem exclusivamente racional é uma abstração; jamais o encontramos na realidade”, pois a experiência humana está mergulhada num universo de sonhos, mistérios e simbolismos onde a fronteira entre o racional e o irracional pode ser muito mais tênue do que pensa a filosofia ocidental. De certa maneira, cabe a menção à crítica filosófica que Albert Camus fez à ciência moderna em Le Mythe de Sisyphe, onde diz que “toda ciência desta terra não me dará nada que possa assegurar-me que este mundo é meu”. Euclides da Cunha, a quem devemos celebrar sempre pela obra e pelo exemplo de empenho em encontrar soluções que conduzam a um país melhor, à sua maneira vivenciou intensamente o significado trágico desta sentença.
A angústia com sua vida e seu país tomavam conta da mente do escritor, e o homem só via tristeza nas situações que o cercavam. O casamento infeliz, a insatisfação com a profissão e as constantes dificuldades financeiras que, não poucas vezes, o forçavam a trabalhar a contragosto, tornavam para ele a vida um grande martírio. O sertão, o interior, o coração das terras — onde há calma, repouso e paz para o espírito — surgia à sua imaginação como a única possibilidade de felicidade e superação da condição de simples mortal. A nação que não era agravada em sua consciência de ex-mosqueteiro, o sentimento de derrota — que não foi só seu, diga-se de passagem, foi de toda uma geração. Mas ele, muito mais que qualquer outro, exilado na solidão de si mesmo, não teve outra saída senão sonhar com uma salvação, individual e, por vezes, coletiva, a esperá-lo lá onde o Brasil é profundo, nalguma vereda deste grande sertão.
(extraído de: OLIVEIRA, Ricardo de. Euclides da Cunha, Os Sertões e a invenção de um Brasil profundo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, p. 511-537, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882002000200012&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10 Fev. 2017)
TRECHOS DE OS SERTÕES
Abramos um parêntese...
A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o tapuia, exprimem estádios evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é um estimulante à revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço — traço de união entre as raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares — é, quase sempre, um desequilibrado. Foville compara-os, de um modo geral, aos histéricos. Mas o desequilíbrio nervoso, em tal caso, é incurável: não há terapêutica para este embater de tendências antagonistas, de raças repentinamente aproximadas, fundidas num organismo isolado. Não se compreende que após divergirem extremadamente, através de largos períodos entre os quais a história é um momento, possam dous ou três povos convergir, de súbito, combinando constituições mentais diversas, anulando em pouco tempo distinções resultantes de um lento trabalho seletivo. Como nas somas algébricas, as qualidades dos elementos que se justapõem não se acrescentam, subtraem-se ou destroem-se segundo os caracteres positivos e negativos em presença. E o mestiço — mulato, mamaluco ou cafuz — menos que um intermediário, é um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores. Contrastando com a fecundidade que acaso possua, ele revela casos de hibridez moral extraordinários: espíritos fulgurantes, às vezes, mas frágeis, irrequietos, inconstantes, deslumbrando um momento e extinguindo-se prestes, feridos pela fatalidade das leis biológicas, chumbados ao plano inferior da raça menos favorecida. Impotente para formar qualquer solidariedade entre as gerações opostas, de que resulta, reflete-lhes os vários aspectos predominantes num jogo permanente de antíteses. E quando avulta — não são raros os casos — capaz das grandes generalizações ou de associar as mais complexas relações abstratas, todo esse vigor mental repousa (salvante os casos excepcionais cujo destaque justifica o conceito) sobre uma moralidade rudimentar, em que se pressente o automatismo impulsivo das raças inferiores.
(extraído de: CUNHA, Euclides da.; GALVÃO, Walnice Nogueira. Os sertões: edição crítica. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 174-175)
A entrada dos prisioneiros foi comovedora. Vinha solene, na frente, o Beatinho, teso o torso desfibrado, olhos presos no chão, e com o passo cadente e tardo exercitado desde muito nas lentas procissões que compartira. O longo cajado oscilava-lhe à mão direita, isocronamente, feito enorme batuta, compassando a marcha verdadeiramente fúnebre. A um de fundo, a fila extensa, tracejando ondulada curva pelo pendor da colina, seguia na direção do acampamento, passando ao lado do quartel da primeira coluna e acumulando-se, cem metros adiante, em repugnante congérie de corpos repulsivos em andrajos.
Os combatentes contemplavam-nos entristecidos. Surpreendiam-se; comoviam-se. O arraial in extremis, punha-lhes adiante, naquele armistício transitório, uma legião desarmada, mutilada, faminta e claudicante, num assalto mais duro que o das trincheiras em fogo. Custava-lhes admitir que toda aquela gente inútil e frágil saísse tão numerosa ainda dos casebres bombardeados durante três meses. Contemplando-lhes os rostos baços, os arcabouços esmirrados e sujos, cujos molambos em tiras não encobriam lanhos, escaras e escalavros — a vitória tão longamente apetecida decaía de súbito. Repugnava aquele triunfo. Envergonhava. Era, com efeito, contraproducente compensação a tão luxuosos gastos de combates, de reveses e de milhares de vidas, o apresamento daquela caqueirada humana — do mesmo passo angulhenta e sinistra, entre trágica e imunda, passando-lhes pelos olhos, num longo enxurro de carcaças e molambos.
Nem um rosto viril, nem um braço capaz de suspender uma arma, nem um peito resfolegante de campeador domado: mulheres, sem-número de mulheres, velhas espectrais, moças envelhecidas, velhas e moças indistintas na mesma fealdade, escaveiradas e sujas, filhos escanchados nos quadris desnalgados, filhos encarapitados às costas, filhos suspensos aos peitos murchos, filhos afastados pelos braços, passando; crianças, sem-número de crianças; velhos, sem-número de velhos; raros homens, enfermos opilados, faces túmidas e mortas, de cera, bustos dobrados, andar cambaleante.
(extraído de: CUNHA, Euclides da.; GALVÃO, Walnice Nogueira. Os sertões: edição crítica. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 566)
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