Debaixo deste angu não tem caroço
Dias Lopes
Talvez por ressaca moral, pelo fato de termos submetido os negros da África Ocidental à brutalidade da escravidão, atribuímos a eles a gloriosa invenção da feijoada. Teriam desenvolvido a receita na senzala, aproveitando os “restos” do porco “desprezados” pela casa grande: orelha, focinho, pé, rabo e língua. Não passa de versão romântica. Os ingredientes e a técnica de preparo mostram a origem lusitana da feijoada. Para completar, os portugueses e descendentes brasileiros jamais desprezaram os miúdos suínos.
Seria também um prato generoso demais para consumo de escravos submetidos a condições tão desumanas que não mereciam sequer o direito de se prover de alimentos. Como mostra Eduardo Frieiro no livro Feijão, angu e couve (Belo Horizonte: Itatiaia, 1982), a comida que recebiam “consistia no estritamente necessário para que os ‘fôlegos vivos’ (como eram chamados) não se enfraquecessem demais ou não morressem de desnutrição, com grave prejuízo dos trabalhos que deles se exigia”.
Se houve algum prato de escravo foi o angu, uma papa ou pirão à base de farinha de milho ou então de mandioca, completamente sem sal. Surgiram ainda o de arroz e o de banana cozida. Atualmente, tende-se a considerar angu apenas o preparado com fubá. O de mandioca é chamado de pirão. Sim, esporadicamente os escravos recebiam feijão para comer, porém da pior qualidade, conforme Frieiro.
Estrangeiros que visitaram o Brasil testemunharam a pobreza e monotonia da dieta desumana dos negros. “É fazendo cozer o fubá na água, sem acrescentar sal, que se faz essa espécie de polenta grosseira que se chama angu e constitui o principal alimento dos escravos”, escreveu em 1817 o botânico e naturalista francês Augustin de Saint-Hilaire, autor de Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. A palavra angu veio da África. Na língua fongbé, falada pelo povo fon (jêje no Brasil), do antigo Daomé (hoje Benin), agou designa uma papa de inhame sem tempero.
Seria lógico que a alimentação dos escravos variasse de acordo com a região do Brasil onde eles se encontravam e da atividade desempenhada, fosse em minas de ouro, engenhos de açúcar, fazendas de gado, cafezais ou serviços urbanos. Mas, segundo Luís da Câmara Cascudo em História da alimentação no Brasil (São Paulo: Global Editora, 2004), isso não acontecia: “A base era idêntica, e apenas a incidência de alguma carne ou pescado para dar gosto distinguia os regimes”.
Em Minas Gerais, o antigo prato dos escravos continua a ser feito com o fubá de granulometria fina e igualmente sem sal. Mas se converte em comida substanciosa por acompanhar tudo, em especial o frango com quiabo ou jiló, a carne ensopada e moída. Com a devida licença da tradição mineira, o angu fica mais apetitoso quando enriquecido com sal e queijo parmesão ralado. Um pouco de manteiga salgada, adicionada por cima no final, atiça a sedução. Joaquim da Costa Pinto Netto, no Caderno de comidas baianas (Salvador: Tempo Brasileiro, 1986), ensina a elaborar o prato: “Quando a água estiver a ferver, já com um pouco de sal, vai-se jogando a farinha aos poucos, ‘em forma de fio’, como se costuma dizer, mexendo sem parar”.
No Rio de Janeiro, o português Manuel Gomes lançou em 1955 um angu batizado com seu sobrenome. Logo ganhou fama. Combina fubá, linguiça e miúdos de boi. Vendido nas ruas em panelões fumegantes transportados por quarenta carrocinhas, matou a fome de operários, taxistas, prostitutas, estudantes, jornalistas, artistas e boêmios em geral. Tom Jobim era freguês do angu do Gomes. As carrocinhas saíram de circulação em 1986, mas hoje existe um endereço com o nome do prato, no Largo de São Francisco da Prainha, 17, na Saúde, que prepara a receita. Além da tradicional, o restaurante Angu do Gomes oferece as versões calabresa, carne moída, frango e vegetariana. O prato esquálido dos escravos virou torpedo nutritivo.
(O Estado de S. Paulo, 15 mar. 2012)
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