O sentido do eterno
A árvore da vida, de Terrence Malick, é aquele tipo de filme que costuma resistir à análise. Se o pegamos por um lado, escapa pelo outro. Se nos concentramos em um tema, deixamos escapar o todo. Se vamos ao conjunto, podemos deixar fugir os detalhes, tão importantes nesta obra. O fato de Malick sabiamente não conceder entrevistas nos deixa livres para interpretar a obra como bem entendermos e dentro dos limites da nossa capacidade. A nada somos induzidos, a não ser pelo estranho poder que emana da tela quando vemos este filme.
Por um lado, é uma obra sensorial, isto é, que nos atinge, em primeiro lugar, pela força das imagens. Em especial aquelas do começo do mundo, em que são traçadas as linhas gerais do Big Bang, do nascimento do universo, a formação das galáxias e dos planetas, o surgimento da vida e a evolução. Quanta ambição, descrever em imagens algo que é da ordem do imponderável, pensável talvez em termos de hipóteses e equações da física.
Depois, há o fator humano, em sua escala comparativamente mínima em relação ao universo. Dentro desse microcosmo, uma escala ainda mais reduzida — uma família norte-americana, nos anos 1950. Uma tragédia, a morte de uma criança. Depois, a descrição de uma infância dura, passada com um pai autoritário e a mãe cheia de amor. Temos alternâncias dentro do tempo, com essa criança, agora adulta, em sua vida vazia num mundo que perdeu a transcendência.
O homem é esse nada diante do universo. Mas o homem é esse universo em si mesmo, quando visto da sua perspectiva. Poeira cósmica e ser divino, ao mesmo tempo. Infinitamente pequeno e infinitamente grande, dependendo do ponto de vista que o contempla.
É um filme religioso? Em certo sentido, sim, a começar pelo título, que evoca a Bíblia e a árvore que estaria no centro do Jardim do Éden. Mas é também de uma religiosidade especial, metafísica, por assim dizer. Como se Malick descrevesse, de forma exaustiva, a humana condição (em especial a infância de Jack) para buscar alguma coisa que vai além dela. No plano espiritual, talvez. No terreno da filosofia, como arte da preparação da morte. Ou, ainda na dimensão de uma metapsicologia que pressinta a expansão do Eu em sua dimensão cósmica.
Como todo filme de amplo espectro, A árvore da vida não se reduz a qualquer dessas circunstâncias. É possível que englobe todas e seja como uma daquelas bonequinhas russas, que esconde outra em seu interior e assim sucessivamente. Poderíamos interpretá-lo intensivamente, e ainda guardaria novas camadas de compreensão. Aliás, essa é uma das marcas da grande obra. É inesgotável. A árvore da vida é como a perplexidade que sente o homem ao contemplar estrelas numa noite fria. A presença do eterno e do infinito pode lhe causar tremor. Mas também esperança, quem sabe?
A ÁRVORE DA VIDA
Título original: The Tree of Life. Direção: Terrence Malick. Gênero: Drama (EUA/2011, 139 minutos). Censura: 10 anos.
(extraído de: O Estado de S. Paulo, 12 ago. 2011)
Contraditória e graciosa
Apesar de figurar entre o melhor realismo sulista norte-americano, ao lado de William Faulkner e Tennessee Williams, Flannery O’Connor pode evocar primeiro lembranças de Guimarães Rosa, Clarice Lispector e até de Frida Kahlo. Ao primeiro contato com sua breve mas poderosa obra, salta aos olhos o uso da linguagem do sul dos EUA dos anos 1950-60, especialmente a usada pelos negros, que ela faz questão de marcar alterando a escrita das palavras. Marry (casar) se torna “mah”, e assim vai, numa valorização do regional em que nosso modernista mineiro primou. A própria Flannery falava o “dialeto” da Geórgia quando chegou à Universidade de Iowa, o que fez um constrangido professor lhe pedir que escrevesse o que estava querendo dizer, porque ele não a entendia.
O desfecho das narrativas, sempre marcado por epifanias, pode lembrar Clarice Lispector, a “bruxa literária” do Brasil. Não por acaso, uma das últimas histórias de Contos completos, lançado há um ano pela Cosac Naify, chama-se “Revelação”.
Já a vida pessoal da autora lembra a pintora mexicana pela presença da dor física. Flannery morreu aos 39 anos de lúpus eritematoso, doença inflamatória das juntas e dos músculos, muito dolorosa, que também matou seu pai. Durante seus últimos 13 anos, viveu só com a mãe na fazenda da família em Milledgeville, na Geórgia.
Numa vida campestre solitária em que seu hobby era colecionar aves, parece natural que a maioria de suas personagens fossem solteiras ou viúvas, defeituosas ou doentes, e, em sua maioria, proprietárias de terra, todas de fé protestante.
Figuras que lembram sua mãe, Regina, estão em diversos contos, nos quais as personagens sempre acabam mortas, característica que levou uma amiga da autora a acusá-la de matricídio. “Ela não lê nenhum deles”, garantiu-lhe Flannery.
A violência aparece num contexto trágico, mas sempre como fruto do livre-arbítrio, não do destino. “Frequentemente, a tragédia decorre da ignorância, mas nunca é perdoada, justificada ou poetizada por um desígnio divino transcendente”, explica Cristóvão Tezza no posfácio que fez para a edição de seu livro de contos no Brasil.
Quando começou a enviar manuscritos para publicação, os primeiros editores a confundiam com um homem cheio de vícios. O que pensar de histórias como “Uma vista da mata”, em que uma garota de 9 anos salta com unhas e dentes para cima do avô, que lhe racha o crânio em uma pedra, ou da filósofa com uma perna de pau, que decide humilhar um vendedor simplório de Bíblias após deixar-se seduzir, mas acaba tendo a prótese roubada?
Não é de espantar que a obra da escritora nunca tenha sido totalmente aceita no meio católico, chegando a figurar em listas de livros proibidos de alguns colégios.
O que surpreende é saber que Flannery, católica de altos pensamentos teológicos, tinha fé e vivia dela. “Que a crença em Cristo seja para alguns um assunto de vida ou morte tem sido uma pedra de tropeço para leitores que desejariam pensar nisso como algo sem maiores consequências”, escreveu ela no prefácio de uma edição de seu romance Wise Blood (Sangue sábio, em tradução livre), em que ela define o protagonista como um cristão malgré lui.
Para sorte desse mesmo leitor, ela não atrelou sua ficção ao proselitismo. Pelo contrário, buscava a narrativa perfeita, reescrevendo constantemente. “O dia do Juízo Final”, seu último conto, é uma nova versão de “O gerânio”, seu primeiro.
“Ela sempre, sempre lutava para achar a imagem redentora, a palavra redentora que iria trazer o significado da experiência”, escreveu a autora Joy Williams em sua resenha da biografia recente escrita por Brad Gooch.
Apesar de seu estilo centrado na perfeição da escrita, quem deseja encontra o cristianismo de O’Connor em meio ao rude tratamento que dispensa às personagens grotescas assassinadas por ela.
“Os contos de Miss O’Connor são todos sobre a operação da graça sobrenatural nas vidas de homens e mulheres naturais”, escreveu a romancista Caroline Gordon.
Graça como a encontrada no conto “O negro artificial”, em que um avô roceiro leva o neto de 15 anos, com quem vive só numa cabana, para conhecer a cidade grande. Quer ensinar o garoto a ser humilde, mas acabam ambos passando por experiências de rejeição, reaproximação um do outro e perdão.
Em meio a tantas facetas, uma das certezas sobre Flannery, essa mulher cheia de contradições, é que ela respirava a literatura. “Preciso escrever para descobrir o que estou fazendo. Como a velhinha, não sei muito bem o que pensar até ver o que digo.”
Serviço: Contos completos, de Flannery O’Connor. Cosac Naify, 720 págs., R$ 79.
(extraído de: Gazeta do Povo, 26 abr. 2009)
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