quarta-feira, 18 de abril de 2012

1EM: Texto descritivo/1

J. K. Rowling

A muitos quilômetros de distância, a névoa gelada que comprimia as vidraças do Primeiro-Ministro flutuava sobre um rio sujo que serpeava entre barrancos cobertos de mato e lixo. Uma enorme chaminé, relíquia de uma fábrica fechada, erguia-se sombria e agourenta. O silêncio total era quebrado apenas pelo rumorejo da água escura, e não havia vestígio de vida exceto por uma raposa esquelética que descera até o barranco na esperança de farejar um saco de peixe com fritas descartado no capim alto. [...]

Depararam com uma cena de total devastação. Um relógio de carrilhão jazia aos seus pés, o mostrador estilhaçado, o pêndulo, mais adiante, como uma espada abandonada. O piano estava virado de lado, as teclas espalhadas pelo chão. Os destroços de um lustre caído brilhavam a pequena distância. Almofadas murchas, as penas do enchimento saindo pelos rasgos laterais; cacos de vidro e louça cobriam tudo como se fossem pó. Dumbledore ergueu a varinha mais alto, para a luz clarear as paredes, cujo papel tinha manchas vermelho-escuras e gelatinosas.

(extraído de: ROWLING, J. K. Harry Potter e o enigma do Príncipe. Tradução de Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. p. 21, 53)



Euclides da Cunha

Monte Santo, afinal, resume-se naquele largo. Ali desembocam pequenas ruas, descendo umas em ladeiras para larga sanga apaulada; abrindo outras para a várzea; outras embatendo, sem saídas, contra a serra.

Esta por sua vez, de perto, perde parte do encanto. Parece diminuir de altitude. Sem mais o perfil regular que assume a distância, tem, revestindo-lhe as encostas, uma flora de vivacidade inexplicável, arraigada na pedra, brotando pelas frinchas dos estratos e vivendo apenas das reações maravilhosas da luz. As capelinhas, tão brancas de longe, por sua vez aparecem exíguas e descuradas. E a estrada ciclópica de muros laterais, de alvenaria, a desabarem em certos trechos, cheia de degraus fendidos, tortuosa, lembra uma enorme escadaria em ruínas. O povoado triste e de todo decadente reflete o mesmo abandono, traindo os desalentos de uma raça que morre, desconhecida à Historia, entre paredes de taipa. Nada recorda o encanto clássico das aldeias. As casas baixas, unidas umas contra as outras, feitas à feição dos acidentes do solo, têm todas a mesma forma — tetos deprimidos sobre quatro muros de barro — gizadas todas por esse estilo brutalmente chato a que tanto se afeiçoavam os primitivos colonizadores. Algumas devem ter cem anos. As mais novas, copiando-lhes, linha a linha, os contornos desgraciosos, por sua vez nascem velhas.

Deste modo, Monte Santo surge desgracioso dentro de uma natureza que lhe cria em roda — como um parênteses naquele sertão aspérrimo — situação aprazível e ridente.

(extraído de: CUNHA, Euclides da. Os sertões. Edição crítica por Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Brasiliense; Secretaria do Estado da Cultura, 1985. p. 289-290)



Aluísio Azevedo

Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.

Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.

A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.

Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia.

Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pelo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.

O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.

(extraído de: AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 10. ed. São Paulo: Ática, 1981. p. 28-29)

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