O anúncio feito a Maria
PAUL CLAUDEL
QUARTO ATO
PRIMEIRA CENA
Sala do primeiro ato, alta noite.
As brasas da lareira espalham um fraco clarão. Longa mesa no centro, cuja toalha estreita tomba por igual em cada ponta. A porta, inteiramente aberta, invade a noite estrelada. Uma vela foi colocada no meio da mesa.
Entra Jacques Hury, como se procurasse alguém. Sai pela porta e reconduz Mara pelo braço.
JACQUES HURY — Que fazes aí?
MARA — Pareceu-me ouvir um barulho de carro lá longe...
JACQUES HURY, escutando — Não ouço nada.
MARA — Não ouves nada, é claro. Mas eu tenho ouvido fino e olho bem aberto.
JACQUES HURY — Seria melhor que fosses dormir.
MARA — Confessa: tu também não andas dormindo direito.
JACQUES HURY — Fico pensando, tentando entender.
MARA — Mas o que, afinal?
JACQUES HURY — Aubaine. Essa criança doente, essa criança à morte... Um belo dia eu volto e me dizem que fugiste com ela, como louca... Era Natal.
No dia dos Santos Inocentes, ei-la que volta com a criança. Estava curada. Curada!
MARA — Foi um milagre.
JACQUES HURY — Sim. Mas ora foi a Virgem, ora uma alma santa não sei onde...
MARA — Não foi uma nem outra. Fui eu que fiz o milagre.
Num sobressalto:
Escuta!
Ouvem os dois.
JACQUES HURY — Não ouço nada.
MARA, tremendo — Fecha essa porta. Está frio demais.
Ele empurra a porta.
JACQUES HURY — O certo, porém, é que seu rosto não é mais o mesmo de outrora...
É o mesmo, é claro, mas é outro. Os olhos, por exemplo. Os olhos mudaram.
MARA — Ah! meu finório, notaste isso sozinho?
Eis o que sucede quando o bom Deus se mete na nossa vida.
Trata de cuidar da tua.
Com violência:
Mas por que, afinal, não tiras o olho da porta?
JACQUES HURY — Tu é que não paras de escutar.
MARA — Eu espero.
JACQUES HURY — Esperas o quê? Esperas por quem?
MARA — Espero meu pai!
Meu pai, Anne Vercors, que há sete anos partiu.
Palavra: chego a pensar que se esqueceu daqui!
Bom sujeito, lembras-te? Era Anne Vercors que o chamavam...
Porque afinal o senhor de Combernon não foi sempre Jacques Hury.
JACQUES HURY — Pois bem: se voltar achará as terras em bom estado.
MARA — E a casa também. Sete anos já que partiu.
Em voz baixa:
Estou ouvindo a sua volta.
JACQUES HURY — Não é muito comum voltar da Terra-Santa.
MARA — E se estivesse vivo, em sete anos, já teria dado notícia!
JACQUES HURY — A Terra-Santa é longe.
Depois do mar.
MARA — E há os piratas, os turcos, os acidentes, as doenças. Há os maus.
JACQUES HURY — Mesmo aqui, só se ouve falar de maldade.
MARA — Como essa mulher, por exemplo, que acabam de achar num buraco.
JACQUES HURY — Que mulher?
MARA — Uma leprosa, dizem...
Talvez por ter caído sozinha.
Quem mandou sair a passeio? Pior para ela!
E pode bem ser que afinal a tenham mesmo empurrado. Alguém.
JACQUES HURY — Uma leprosa!
MARA — Ah! ah! isso te faz cócega no ouvido? Uma pequena lepra de nada ataca logo a vista. E quando a gente não enxerga direito é melhor não andar passeando.
E não é todo mundo que gosta de uma vizinhança dessas. Acontece logo alguma coisa!
JACQUES HURY — Aliás, se o pai voltar é pouco provável que fique muito contente.
MARA — “Mara!” dirá ele logo. Mara, que ele amava mais.
Que felicidade saber que foi ela afinal que agarrou Jacques.
E dorme todas as noites a seu lado como uma espada nua!
JACQUES HURY — E sua neta, sua netinha, não ficará contente de beijá-la?
MARA — “Que bela criança! dirá ele. Que belos olhos azuis! Isso me lembra alguma coisa!”
JACQUES HURY, como se falasse em lugar do pai — “E a velha, onde está?”
MARA, numa reverência — Não aqui, no momento, meu Senhor. Meu Deus! Quando se vai a Jerusalém, não se deve esperar que todo mundo espere!...
Sete anos é muita coisa!
É Mara que ocupa agora o seu lugar junto ao fogo.
JACQUES HURY, como há pouco — “Bom dia, Mara!”
MARA — Bom dia, meu pai!
Nesse meio tempo Anne Vercors entrou pelo lado da cena, e se acha atrás deles. Traz nos braços o corpo de Violaine.
ANNE VERCORS — Bom dia, Jacques!
SEGUNDA CENA
ANNE V ERCORS, contornando a mesa, vai colocar-se atrás dela, no local em que se acha a cátedra. Contempla um instante um e outra. — Bom dia, Mara!
Mara não responde.
JACQUES HURY — Pai, que é isso que nos trazes debaixo do manto?
Que corpo é esse, morto, nos teus braços?
ANNE VERCORS — Ajuda-me a estendê-lo ao longo da mesa.
Devagar, devagar, meu filho!
Estendem o corpo na mesa, e Anne Vercors o cobre de novo com o manto.
Ei-la! É ela! É a mesa em que parti o pão para todos no dia da partida.
Bom dia, Jacques! Bom dia, Mara!
Todos dois estão aqui no meu lugar e o meu reino em ambos continua;
E a terra sobra a qual, de uma a outra ponta, como um grande álamo.
Ora mais longe, ora se encolhendo,
Se estende a sombra de Anne Vercors.
E quanto à velha Mãe, eu ouvi tudo.
Sei que me espera nesse lugar onde não tardarei ir encontrá-la.
JACQUES HURY — Pai! Eu te pergunto que coisa é essa que nos trouxeste nos braços.
E que corpo é esse, morto, que se acha estendido na mesa?
ANNE VERCORS — Não morto, Jacques, não totalmente morto. Não vês que ela respira?
JACQUES HURY — Pai, que vem a ser?
ANNE VERCORS — Alguma coisa que achei ontem no caminho, num grande buraco de areia. E cuja voz me chamava fracamente.
JACQUES HURY — Uma leprosa, não é?
ANNE VERCORS — Uma leprosa. Quem te disse? Já o sabias então? Ah! foi Mara, sem dúvisa, que te contou.
JACQUES HURY — E poderia eu perguntar-te por que trazes uma leprosa a essa casa honrada que é a minha?
ANNE VERCORS — Vais pôr-nos ambos nas rua?
Foi ela que me pediu, a boca no meu ouvido,
Que eu a trouxesse aqui. A trouxesse aqui.
Pode ainda falar. Mas, ai, que foi feito dos belos olhos de minha filha Violaine? Não mais existem.
JACQUES HURY — Será que ela escuta o que dizemos?
ANNE VERCORS — Não sei. Ela pede a paz.
Pede que não estejas mais zangado com ela. E Mara também. Se Mara está zangada,
Olha Violaine estendida.
Peço perdão.
JACQUES HURY — Não; não estou zangado.
ANNE VERCORS — Seus olhos, coitadinha!
Não tem mais olhos.
Mas o coração ainda bate.
Fracamente, fracamente!
A noite inteira ouvi o coração de minha filha batendo contra o meu, e ela se esforçava para me apertar fortemente,
Fracamente, fracamente.
E o coração de vez em quando parava, e retomava depois sua corrida de bichinho ferido.
Pan pan pan! pan pan pan! Pai! Pai!
JACQUES HURY — E ela falou de mim?
ANNE VERCORS — Sim, Jacques.
JACQUES HURY — E daquele outro também... Ela era minha noiva!... Daquele outro, certa manhã de maio?...
ANNE VERCORS — De quem, Jacques, queres falar?
JACQUES HURY — De Pedro de Craon! Esse leproso, esse imundo, esse ladrão. Esse pedreiro que veio, há sete anos, abrir o flanco de Monsanvierge!
Silêncio.
ANNE VERCORS — Não houve pecado algum entre Violaine e Pedro.
JACQUES HURY — E o que dizes desse casto beijo que trocaram certa manhã de maio?
Silêncio.
Anne Vercors faz que “não” com a cabeça lentamente.
Jacques Hury puxa Mara penho punho e faz-lhe erguer a mão direita.
Certa manhã de maio! Mara jura que certa manhã de maio, tendo-se levantado muito cedo,
Viu essa Violaine, que aí está, beijando a Pedro de Craon na boca.
Silêncio.
ANNE VERCORS — Eu afirmo que não.
JACQUES HURY — Então, tua filha Mara mentiu?
ANNE VERCORS — Mara não mentiu.
JACQUES HURY — Eu, eu que era seu noivo, jamais me permitira que a tocasse de leve!
ANNE VERCORS — Vi Pedro de Craon em Jerusalém. Estava curado.
JACQUES HURY — Curado?
ANNE VERCORS — Curado. E foi justamente por isso que partiu para lá, para cumprir seu voto.
JACQUES HURY — Curado... e eu condenado.
ANNE VERCORS — Foi para curar-te também, Jacques, meu filho, que vim trazer-te essas relíquias vivas.
JACQUES HURY — Pai, ó pai, eu tinha uma filha que estava também para morrer
(Ela se chama Aubaine),
E de repente foi curada.
ANNE VERCORS, fazendo um gesto — Louvado seja Deus!
JACQUES HURY — Louvado seja Deus!
Mas essa boca, essa boca de tua filha, essa boca que me deras, que me entregaras! Essa boca, não era dela, era minha! Essa boca e o sopro de vida que lhe passava entre os lábios!
ANNE VERCORS — A boca da mulher, antes de pertencer ao homem, pertence a Deus, que no dia do batismo a salgou. É só a Deus que ela diz: “Que Ele me beije com um beijo de sua boca!”
JACQUES HURY — Ela não pertencia mais a si própria! Eu lhe havia dado o meu anel!
ANNE VERCORS — Ei-lo brilhando no seu dedo.
JACQUES HURY, estupefato — É verdade!
ANNE VERCORS — Foi Pedro de Craon, lá longe, que me entregou o anel, e eu o coloquei de novo no dedo da doadora.
JACQUES HURY — E o meu (não é o que estás pensando?) é com o de Mara que faz par agora!
ANNE VERCORS — Respeita-o, pois, mais ainda.
JACQUES HURY — Manhã de maio! Meu pai, meu pai! Tudo ria em torno dela. Ela me amava. Eu a amava também. Tudo era dela, e eu tudo lhe havia dado!
ANNE VERCORS — Jacques, meu filho, escuta! Tudo isso era belo demais! Não era possível aceitá-lo!
JACQUES HURY — Que queres tu dizer?
ANNE VERCORS — Jacques, meu filho! Ao mesmo apelo que o pai escutou, a filha também deu ouvido.
JACQUES HURY — Que apelo é esse?
ANNE VERCORS, como se recitasse — O Anjo do Senhor anunciou a Maria e ela concebeu do Espírito Santo.
JACQUES HURY — Que foi que ela concebeu?
ANNE VERCORS — Ela viu a grande dor do mundo em torno dela, e a Igreja partida em duas, e a França por quem Joana d’Arc foi queimada...
E foi por isso que beijou o leproso na boca, sabendo o que fazia.
JACQUES HURY — Num segundo! Num segundo decidiu ela isso tudo?
ANNE VERCORS — Eis a escrava do Senhor...
JACQUES HURY — Ela salvou o mundo e eu me perdi!
ANNE VERCORS — Não, Jacques, tu não estás perdido, e Mara não está perdida ainda que o queira, e Aubaine, Aubaine está viva!
E nada está perdido, e a França não está perdida, e eis que da terra até o céu, de boa ou má vontade,
Brotam, sobem, irresistíveis, a esperança e o louvor!
O Papa está de novo em Roma e o Rei no trono.
E eu, que me escandalizara como um judeu porque a face da Igreja se obscurecera e caminhava cambaleando abandonada dos homens,
Quis de novo apertar meu peito no túmulo vazio, meter a minha mão no buraco da cruz, como o apóstolo meteu a sua no buraco da chagas.
Mas minha Violaine foi mais sábia!
Será que o fim da vida é viver? Estarão os pés dos filhos de Deus pregado a essa terra miserável?
O fim não é viver, mas morrer! Não é fabricar a cruz, mas subir na cruz e dar, sorrindo, o que temos!
Eis a alegria, eis a liberdade, eis a graça, eis a mocidade eterna, — e Deus não seja Deus se o sangue do ancião junto do sangue moço
Não fizer, na toalha do sacrifício, mancha tão rubra e fresca como a do sangue do cordeiro de um ano!
Ó Violaine! Filha da graça! Carne da minha carne! Tão longe quanto o fogo enfumaçado da fazenda está da estrela da manhã,
Quando essa bela virgem pousa no seio do sol sua cabeça iluminada,
Possa teu pai no céu contemplar-te eternamente no lugar que te foi preparado!
Deus não seja Deus, se onde passou a filho, o pai também não passar!
Que vale o mundo ao lado da vida? E que vale a vida, senão para servir e ser dada!
Por que a gente se atormentar quando a ordem é esta, e é tão fácil obedecer?
Foi assim que Violaine sem hesitar seguiu a mão que lhe foi estendida...
JACQUES HURY — Ó Violaine, ó cruel Violaine! Desejo de minh’alma, me traíste!
Ó detestável paraíso! Inútil e desprezado amor! Jardim em má hora plantado!
Doce Violaine! Pérfida Violaine! Ó silêncio e profundeza da mulher!
Não me dirás nada, então? Não irás responder-me alguma coisa? Continuarás calada?
Tendo-me enganado com palavras pérfidas,
Tendo-me enganado com esse sorriso amargo e doce,
Parte para onde não a posso seguir.
E eu, com esse dardo envenenado no flanco,
Será preciso que continue a viver!
Rumores da fazenda que acorda.
Sobe ao céu a cotovia,
Pede a Deus faça bom dia,
Para o pai e para a mãe!
ANNE VERCORS — O dia se levanta! Ouço a fazenda que desperta e todos os cavalos da minha terra, nos pesados arreios, quatro a quatro.
Essas pesadas quadrigas de que fala a Bíblia e que se preparam para o evangelho da sementeira e do arado.
Vai abrir as duas folhas da grande porta. O dia penetra na sala.
JACQUES HURY — Pai, contempla essa terra que é tua e te esperava com o sorriso na boca!
Teu domínio, esse oceano de sulcos até o fim da França, não desmereceu nas minhas mãos!
A terra, ao menos, não me enganou, e nem eu a enganei, a essa terra fiel e forte!
Há um homem em Combernon! A fé jurada, o casamento que contraí com ela, não foi por mim traído.
ANNE VERCORS — Não é mais o tempo da colheita, mas o tempo da sementeira. A terra por muito tempo nos nutriu, agora é a hora de alimentá-la por minha vez
Voltando-se para Violaine.
Com essa preciosa semente.
JACQUES HURY, torcendo as mãos — Violaine, Violaine! Tu me escutas?
MARA, avançando impetuosamente — Ela não ouve. Tua voz não chega até ela! Mas eu, eu saberei fazer que ela me escute.
Em voz baixa e forte.
Violaine! Violaine! Sou tua irmã! Tu me escutas, Violaine?
JACQUES HURY — A mão! Eu vi a mão mexer!
MARA — Ah! ah! Estás vendo? Ela escuta. Ela escutou!
Essa voz, essa mesma voz de sua irmã que um dia no Natal lhe violou as entranhas!
JACQUES HURY — Meu pai! Meu pai! Ela está louca. Não ouves o que está dizendo?
Esse milagre... essa criança... eu estou louco... ela está louca!
ANNE VERCORS — Ela disse a verdade. Eu sei de tudo.
MARA — Não, não! Eu não estou louca. E ela — olhai! — ela ouve, ela sabe, ela entendeu!
Pan pan pan!
Que dizia o pai agora mesmo, que dizia no primeiro toque do Angelus?
ANNE VERCORS — O Anjo do Senhor anunciou a Maria e ela concebeu do Espírito Santo.
MARA — E o que é, o que é que diz o segundo toque?
ANNE VERCORS — Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa vontade.
MARA — E que diz o terceiro?
ANNE VERCORS — E o Verbo se fez carne e habitou entre nós.
MARA — E o Verbo se fez carne e habitou entre nós.
E o grito de Mara, e o apelo de Mara, e o rugido de Mara, ele também, — ele se fez carne no seio desse horror, no seio dessa inimiga, no seio dessa pessoa em ruína, no seio dessa abominável leprosa!
E essa filha que ela me havia tomado,
Gritei tão forte do fundo das minhas entranhas, que por fim a arranquei, arranquei-a desse túmulo vivo!
Essa criança que eu gerei, foi ela que a pos no mundo!
JACQUES HURY — Foi ela que fez aquilo?
MARA — Tu sabes tudo! Sim, aquela noite, a noite de Natal!
Aubaine, eu disse que ela estava doente, mas não era verdade: estava morta! Um corpinho gelado!
E tu dizes que foi ela que fez aquilo?
Foi Deus, foi Deus que o fez! E afinal de contas eu fui a mais forte! Foi Mara, Mara que fez aquilo!
Jacques Hury solta uma espécie de grito e, repelindo violentamente Mara, se atira aos pés de Violaine.
MARA — Ele se atira aos pés dessa Violaine que o traiu.
(E essa terra que bastava para todos, não era boa para ela!)
E a palavra que jurara com seus lábios, ela a pos entre os lábios do leproso.
JACQUES HURY — Cala-te.
MARA — É só a ela que ele ama, só a ela que todos amam. É só a ela que amam, e seu pai a abandona, e sua mãe a aconselha lindamente, e o noivo... como acreditou no que dizia!
O amor que lhe tinham era isso. O meu é de outra espécie.
JACQUES HURY — Se é! Foste tu que conduziste Violaine até o buraco de areia.
A mão esquerda empurrou enquanto a direita guiava.
MARA — Ele sabe. Nada lhe escapa!
JACQUES HURY — Disse ou não a verdade?
MARA — E deveria então esse homem que me pertence, e que é meu, ser partido em dois, metade aqui e outra metade no bosque da leprosa?
E seria preciso que minha filha, que é minha, fosse partida ao meio e tivesse duas mães, uma para o corpo, outra para a alma?
Fui eu! Fui eu que fiz tudo isto!
Surdamente, e acabrunhada, fitando as mãos.
Fui eu! Fui eu que fiz tudo isto!
ANNE VERCORS — Não, Mara, não foste tu, mas uma outra que te possuía. Mara, minha filha, tu sofres; eu quisera bem consolar-te!
Ele voltou. Ele será sempre teu, esse pai que tu outrora amavas! Mara, Violaine! Ó minhas duas filhinhas! Ó meus dois bebês nos meus braços! Todas duas, eu vos amava, e vossos dois corações, juntinhos, faziam um com o meu.
MARA, num grito dilacerante — Pai, pai, minha filha estava morta e foi ela que a ressuscitou!
VOZ DE CRIANÇA FORA:
Margarida, eu bem preciso
Do teu sapato cinzento
Para ir ao Paraíso.
Faz bom tempo, Margarida,
Faz bom tempo por aqui.
Já escuto o passarinho:
Pi i i i !
No meio da canção Violaine levanta lentamente o braço e o deixa cair ao lado de Jacques.
VIOLAINE — Pai, é bela essa canção, e a reconheço. É a que cantávamos outrora em busca das amoras, Mara,
Ao longo das sebes!
ANNE VERCORS — Violaine, Jacques está aí, perto de ti.
VIOLAINE — Estará ainda zangado?
ANNE VERCORS — Não está mais zangado.
VIOLAINE, pondo-lhe a mão sobre a cabeça
— Bom dia, Jacques!
JACQUES HURY, surdamente — Ave, ó minha noiva entre os ramos em flor!
VIOLAINE — Pai, dize-lhe que eu o amo.
ANNE VERCORS — Ele também, jamais deixou de amar-te.
VIOLAINE — Pai, dize-lhe que eu o amo!...
ANNE VERCORS — Ouve como ele nada diz...
VIOLAINE — Pedro de Craon...
ANNE VERCORS — Pedro de Craon?
VIOLAINE — Pedro de Craon, dize-lhe que o amo. Esse beijo que eu lhe dei, é preciso que ele faça com ele uma igreja.
ANNE VERCORS — Já está, Violaine, começada.
VIOLAINE — E Mara, ela me ama! Ela só, foi a única que acreditou em mim!
ANNE VERCORS — Jacques, escuta bem!
VIOLAINE — Essa criança que ela me deu, essa criança que me nasceu entre os braços!
Ah, meu Deus, como era bom, como era doce, Mara! Ah! como obedeceu direitinho, como fez tudo o que devia fazer!
Pai, ó pai, como é doce, como é terrível pôr uma alma no mundo!
ANNE VERCORS — Tu falas deste mundo, Violaine, ou falas já do outro?
VIOLAINE — Dos dois, eu eu digo que são um só, e que a misercórdia de Deus é imensa!
JACQUES HURY — Acabou-se para mim a felicidade.
VIOLAINE — Acabou-se, que importância tem isto?
Não foi a felicidade que te foi prometida: trabalha, é tudo o que te pedem.
Interroga a velha terra, e ela sempre responderá com o pão e o vinho.
Mas eu, eu acabei, e passo adiante.
Que será um dia longe de mim? Logo terá passado.
E então, quando chegar a tua vez, e que vires a grande porta estalar e mover-se,
Sou eu que estou do outro lado.
JACQUES HURY — Ave, ó minha noiva entre os ramos em flor!
VIOLAINE — Tu te lembras?
Jacques! Bom dia, Jacques!
Entram então todos os servidores da fazenda, e acendem as velas que trazem.
VIOLAINE — Jacques, ainda estás aqui?
JACQUES HURY — Estou, Violaine.
VIOLAINE — Este ano foi bom e o trigo belo?
JACQUES HURY — Tanto que não se sabe mais onde metê-lo.
VIOLAINE — Ah!
Como é bela uma grande colheita!
Sim, mesmo agora, eu me lembro, e acho que é belo!
JACQUES HURY — Sim, Violaine.
VIOLAINE — Como é belo viver (com profundo fervor) e como a glória de Deus é imensa!
JACQUES HURY — Vive, então, Violaine, e fica conosco!
VIOLAINE, retombando no leito — Mas como é bom também
Morrer, quando se acaba bem, e sobre nós se estende pouco a pouco
O obscurecimento de uma sombra escura.
Silêncio.
Ouve-se o ANGELUS (vozes):
l. Pax pax pax
2. Pax pax pax
3. Pax pax pax
Gloria im excelsis Deo et in terra pax hominibus bonoe voluntatis.
Loe ta re
Loe ta re
Loe ta re!
Anne Vercors vai buscar Mara e a conduz pela mão perto de Violaine, em face de Jacques. Com a mão esquerda ele toma a mão de Jacques Hury e a levanta a meia altura. Nesse instante Mara desprende a sua e toma a de Jacques, que permanece de cabeça baixa, olhando Violaine. O pai encerra as duas mãos nas suas, e faz uma solene elevação.
Nesse instante Jacques Hury ergue a cabeça e fita Mara que tem os olhos duramente fixados nele. Os sinos tocam.
EXPLICIT