quinta-feira, 26 de abril de 2012

1EM: Texto descritivo, atividade 2


2º bimestre, atividade 2
27/4/2012


Descrição objetiva de ambiente.




A atividade 2 deve ser entregue na folha de atividade recebida, escrita à mão, à caneta.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

1EM: Texto descritivo/2, atividade 1

2º bimestre, atividade 1
20/4/2012

Escreva um texto predominantemente descritivo sobre um dos seguintes itinerários:

1) caminho que vai da porta da sua residência até o seu quarto;

2) caminho que vai da porta da sua residência (portão da rua, porta do prédio) até a sua escola.

Você não precisa se deter apenas nos elementos físicos; pode falar também das suas impressões.

Formato: fonte Times New Roman, corpo 12, entrelinha 1,5.
Salve o arquivo como 1EM_201_Seu nome e envie-o anexado por e-mail ao professor, com o assunto 1EM.

8EF: Texto teatral escrito

O anúncio feito a Maria

PAUL CLAUDEL


QUARTO ATO

PRIMEIRA CENA

Sala do primeiro ato, alta noite.
As brasas da lareira espalham um fraco clarão. Longa mesa no centro, cuja toalha estreita tomba por igual em cada ponta. A porta, inteiramente aberta, invade a noite estrelada. Uma vela foi colocada no meio da mesa.

Entra Jacques Hury, como se procurasse alguém. Sai pela porta e reconduz Mara pelo braço.

JACQUES HURY — Que fazes aí?
MARA — Pareceu-me ouvir um barulho de carro lá longe...
JACQUES HURY, escutando — Não ouço nada.
MARA — Não ouves nada, é claro. Mas eu tenho ouvido fino e olho bem aberto.
JACQUES HURY — Seria melhor que fosses dormir.
MARA — Confessa: tu também não andas dormindo direito.
JACQUES HURY — Fico pensando, tentando entender.
MARA — Mas o que, afinal?
JACQUES HURY — Aubaine. Essa criança doente, essa criança à morte... Um belo dia eu volto e me dizem que fugiste com ela, como louca... Era Natal.
No dia dos Santos Inocentes, ei-la que volta com a criança. Estava curada. Curada!
MARA — Foi um milagre.
JACQUES HURY — Sim. Mas ora foi a Virgem, ora uma alma santa não sei onde...
MARA — Não foi uma nem outra. Fui eu que fiz o milagre.

Num sobressalto:

Escuta!

Ouvem os dois.

JACQUES HURY — Não ouço nada.
MARA, tremendo — Fecha essa porta. Está frio demais.

Ele empurra a porta.

JACQUES HURY — O certo, porém, é que seu rosto não é mais o mesmo de outrora...
É o mesmo, é claro, mas é outro. Os olhos, por exemplo. Os olhos mudaram.
MARA — Ah! meu finório, notaste isso sozinho?
Eis o que sucede quando o bom Deus se mete na nossa vida.
Trata de cuidar da tua.

Com violência:

Mas por que, afinal, não tiras o olho da porta?
JACQUES HURY — Tu é que não paras de escutar.
MARA — Eu espero.
JACQUES HURY — Esperas o quê? Esperas por quem?
MARA — Espero meu pai!
Meu pai, Anne Vercors, que há sete anos partiu.
Palavra: chego a pensar que se esqueceu daqui!
Bom sujeito, lembras-te? Era Anne Vercors que o chamavam...
Porque afinal o senhor de Combernon não foi sempre Jacques Hury.
JACQUES HURY — Pois bem: se voltar achará as terras em bom estado.
MARA — E a casa também. Sete anos já que partiu.

Em voz baixa:

Estou ouvindo a sua volta.
JACQUES HURY — Não é muito comum voltar da Terra-Santa.
MARA — E se estivesse vivo, em sete anos, já teria dado notícia!
JACQUES HURY — A Terra-Santa é longe.
Depois do mar.
MARA — E há os piratas, os turcos, os acidentes, as doenças. Há os maus.
JACQUES HURY — Mesmo aqui, só se ouve falar de maldade.
MARA — Como essa mulher, por exemplo, que acabam de achar num buraco.
JACQUES HURY — Que mulher?
MARA — Uma leprosa, dizem...
Talvez por ter caído sozinha.
Quem mandou sair a passeio? Pior para ela!
E pode bem ser que afinal a tenham mesmo empurrado. Alguém.
JACQUES HURY — Uma leprosa!
MARA — Ah! ah! isso te faz cócega no ouvido? Uma pequena lepra de nada ataca logo a vista. E quando a gente não enxerga direito é melhor não andar passeando.
E não é todo mundo que gosta de uma vizinhança dessas. Acontece logo alguma coisa!
JACQUES HURY — Aliás, se o pai voltar é pouco provável que fique muito contente.
MARA — “Mara!” dirá ele logo. Mara, que ele amava mais.
Que felicidade saber que foi ela afinal que agarrou Jacques.
E dorme todas as noites a seu lado como uma espada nua!
JACQUES HURY — E sua neta, sua netinha, não ficará contente de beijá-la?
MARA — “Que bela criança! dirá ele. Que belos olhos azuis! Isso me lembra alguma coisa!”
JACQUES HURY, como se falasse em lugar do pai — “E a velha, onde está?”
MARA, numa reverência — Não aqui, no momento, meu Senhor. Meu Deus! Quando se vai a Jerusalém, não se deve esperar que todo mundo espere!...
Sete anos é muita coisa!
É Mara que ocupa agora o seu lugar junto ao fogo.
JACQUES HURY, como há pouco — “Bom dia, Mara!”
MARA — Bom dia, meu pai!

Nesse meio tempo Anne Vercors entrou pelo lado da cena, e se acha atrás deles. Traz nos braços o corpo de Violaine.

ANNE VERCORS — Bom dia, Jacques!

SEGUNDA CENA

ANNE V ERCORS, contornando a mesa, vai colocar-se atrás dela, no local em que se acha a cátedra. Contempla um instante um e outra. — Bom dia, Mara!

Mara não responde.

JACQUES HURY — Pai, que é isso que nos trazes debaixo do manto?
Que corpo é esse, morto, nos teus braços?
ANNE VERCORS — Ajuda-me a estendê-lo ao longo da mesa.
Devagar, devagar, meu filho!

Estendem o corpo na mesa, e Anne Vercors o cobre de novo com o manto.

Ei-la! É ela! É a mesa em que parti o pão para todos no dia da partida.
Bom dia, Jacques! Bom dia, Mara!
Todos dois estão aqui no meu lugar e o meu reino em ambos continua;
E a terra sobra a qual, de uma a outra ponta, como um grande álamo.
Ora mais longe, ora se encolhendo,
Se estende a sombra de Anne Vercors.
E quanto à velha Mãe, eu ouvi tudo.
Sei que me espera nesse lugar onde não tardarei ir encontrá-la.
JACQUES HURY — Pai! Eu te pergunto que coisa é essa que nos trouxeste nos braços.
E que corpo é esse, morto, que se acha estendido na mesa?
ANNE VERCORS — Não morto, Jacques, não totalmente morto. Não vês que ela respira?
JACQUES HURY — Pai, que vem a ser?
ANNE VERCORS — Alguma coisa que achei ontem no caminho, num grande buraco de areia. E cuja voz me chamava fracamente.
JACQUES HURY — Uma leprosa, não é?
ANNE VERCORS — Uma leprosa. Quem te disse? Já o sabias então? Ah! foi Mara, sem dúvisa, que te contou.
JACQUES HURY — E poderia eu perguntar-te por que trazes uma leprosa a essa casa honrada que é a minha?
ANNE VERCORS — Vais pôr-nos ambos nas rua?
Foi ela que me pediu, a boca no meu ouvido,
Que eu a trouxesse aqui. A trouxesse aqui.
Pode ainda falar. Mas, ai, que foi feito dos belos olhos de minha filha Violaine? Não mais existem.
JACQUES HURY — Será que ela escuta o que dizemos?
ANNE VERCORS — Não sei. Ela pede a paz.
Pede que não estejas mais zangado com ela. E Mara também. Se Mara está zangada,

Olha Violaine estendida.

Peço perdão.
JACQUES HURY — Não; não estou zangado.
ANNE VERCORS — Seus olhos, coitadinha!
Não tem mais olhos.
Mas o coração ainda bate.
Fracamente, fracamente!
A noite inteira ouvi o coração de minha filha batendo contra o meu, e ela se esforçava para me apertar fortemente,
Fracamente, fracamente.
E o coração de vez em quando parava, e retomava depois sua corrida de bichinho ferido.
Pan pan pan! pan pan pan! Pai! Pai!
JACQUES HURY — E ela falou de mim?
ANNE VERCORS — Sim, Jacques.
JACQUES HURY — E daquele outro também... Ela era minha noiva!... Daquele outro, certa manhã de maio?...
ANNE VERCORS — De quem, Jacques, queres falar?
JACQUES HURY — De Pedro de Craon! Esse leproso, esse imundo, esse ladrão. Esse pedreiro que veio, há sete anos, abrir o flanco de Monsanvierge!

Silêncio.

ANNE VERCORS — Não houve pecado algum entre Violaine e Pedro.
JACQUES HURY — E o que dizes desse casto beijo que trocaram certa manhã de maio?

Silêncio.

Anne Vercors faz que “não” com a cabeça lentamente.
Jacques Hury puxa Mara penho punho e faz-lhe erguer a mão direita.

Certa manhã de maio! Mara jura que certa manhã de maio, tendo-se levantado muito cedo,
Viu essa Violaine, que aí está, beijando a Pedro de Craon na boca.

Silêncio.

ANNE VERCORS — Eu afirmo que não.
JACQUES HURY — Então, tua filha Mara mentiu?
ANNE VERCORS — Mara não mentiu.
JACQUES HURY — Eu, eu que era seu noivo, jamais me permitira que a tocasse de leve!
ANNE VERCORS — Vi Pedro de Craon em Jerusalém. Estava curado.
JACQUES HURY — Curado?
ANNE VERCORS — Curado. E foi justamente por isso que partiu para lá, para cumprir seu voto.
JACQUES HURY — Curado... e eu condenado.
ANNE VERCORS — Foi para curar-te também, Jacques, meu filho, que vim trazer-te essas relíquias vivas.
JACQUES HURY — Pai, ó pai, eu tinha uma filha que estava também para morrer
(Ela se chama Aubaine),
E de repente foi curada.
ANNE VERCORS, fazendo um gesto — Louvado seja Deus!
JACQUES HURY — Louvado seja Deus!
Mas essa boca, essa boca de tua filha, essa boca que me deras, que me entregaras! Essa boca, não era dela, era minha! Essa boca e o sopro de vida que lhe passava entre os lábios!
ANNE VERCORS — A boca da mulher, antes de pertencer ao homem, pertence a Deus, que no dia do batismo a salgou. É só a Deus que ela diz: “Que Ele me beije com um beijo de sua boca!”
JACQUES HURY — Ela não pertencia mais a si própria! Eu lhe havia dado o meu anel!
ANNE VERCORS — Ei-lo brilhando no seu dedo.
JACQUES HURY, estupefato — É verdade!
ANNE VERCORS — Foi Pedro de Craon, lá longe, que me entregou o anel, e eu o coloquei de novo no dedo da doadora.
JACQUES HURY — E o meu (não é o que estás pensando?) é com o de Mara que faz par agora!
ANNE VERCORS — Respeita-o, pois, mais ainda.
JACQUES HURY — Manhã de maio! Meu pai, meu pai! Tudo ria em torno dela. Ela me amava. Eu a amava também. Tudo era dela, e eu tudo lhe havia dado!
ANNE VERCORS — Jacques, meu filho, escuta! Tudo isso era belo demais! Não era possível aceitá-lo!
JACQUES HURY — Que queres tu dizer?
ANNE VERCORS — Jacques, meu filho! Ao mesmo apelo que o pai escutou, a filha também deu ouvido.
JACQUES HURY — Que apelo é esse?
ANNE VERCORS, como se recitasse — O Anjo do Senhor anunciou a Maria e ela concebeu do Espírito Santo.
JACQUES HURY — Que foi que ela concebeu?
ANNE VERCORS — Ela viu a grande dor do mundo em torno dela, e a Igreja partida em duas, e a França por quem Joana d’Arc foi queimada...
E foi por isso que beijou o leproso na boca, sabendo o que fazia.
JACQUES HURY — Num segundo! Num segundo decidiu ela isso tudo?
ANNE VERCORS — Eis a escrava do Senhor...
JACQUES HURY — Ela salvou o mundo e eu me perdi!
ANNE VERCORS — Não, Jacques, tu não estás perdido, e Mara não está perdida ainda que o queira, e Aubaine, Aubaine está viva!
E nada está perdido, e a França não está perdida, e eis que da terra até o céu, de boa ou má vontade,
Brotam, sobem, irresistíveis, a esperança e o louvor!
O Papa está de novo em Roma e o Rei no trono.
E eu, que me escandalizara como um judeu porque a face da Igreja se obscurecera e caminhava cambaleando abandonada dos homens,
Quis de novo apertar meu peito no túmulo vazio, meter a minha mão no buraco da cruz, como o apóstolo meteu a sua no buraco da chagas.
Mas minha Violaine foi mais sábia!
Será que o fim da vida é viver? Estarão os pés dos filhos de Deus pregado a essa terra miserável?
O fim não é viver, mas morrer! Não é fabricar a cruz, mas subir na cruz e dar, sorrindo, o que temos!
Eis a alegria, eis a liberdade, eis a graça, eis a mocidade eterna, — e Deus não seja Deus se o sangue do ancião junto do sangue moço
Não fizer, na toalha do sacrifício, mancha tão rubra e fresca como a do sangue do cordeiro de um ano!
Ó Violaine! Filha da graça! Carne da minha carne! Tão longe quanto o fogo enfumaçado da fazenda está da estrela da manhã,
Quando essa bela virgem pousa no seio do sol sua cabeça iluminada,
Possa teu pai no céu contemplar-te eternamente no lugar que te foi preparado!
Deus não seja Deus, se onde passou a filho, o pai também não passar!
Que vale o mundo ao lado da vida? E que vale a vida, senão para servir e ser dada!
Por que a gente se atormentar quando a ordem é esta, e é tão fácil obedecer?
Foi assim que Violaine sem hesitar seguiu a mão que lhe foi estendida...
JACQUES HURY — Ó Violaine, ó cruel Violaine! Desejo de minh’alma, me traíste!
Ó detestável paraíso! Inútil e desprezado amor! Jardim em má hora plantado!
Doce Violaine! Pérfida Violaine! Ó silêncio e profundeza da mulher!
Não me dirás nada, então? Não irás responder-me alguma coisa? Continuarás calada?
Tendo-me enganado com palavras pérfidas,
Tendo-me enganado com esse sorriso amargo e doce,
Parte para onde não a posso seguir.
E eu, com esse dardo envenenado no flanco,
Será preciso que continue a viver!

Rumores da fazenda que acorda.

Sobe ao céu a cotovia,
Pede a Deus faça bom dia,
Para o pai e para a mãe!

ANNE VERCORS — O dia se levanta! Ouço a fazenda que desperta e todos os cavalos da minha terra, nos pesados arreios, quatro a quatro.
Essas pesadas quadrigas de que fala a Bíblia e que se preparam para o evangelho da sementeira e do arado.

Vai abrir as duas folhas da grande porta. O dia penetra na sala.

JACQUES HURY — Pai, contempla essa terra que é tua e te esperava com o sorriso na boca!
Teu domínio, esse oceano de sulcos até o fim da França, não desmereceu nas minhas mãos!
A terra, ao menos, não me enganou, e nem eu a enganei, a essa terra fiel e forte!
Há um homem em Combernon! A fé jurada, o casamento que contraí com ela, não foi por mim traído.
ANNE VERCORS — Não é mais o tempo da colheita, mas o tempo da sementeira. A terra por muito tempo nos nutriu, agora é a hora de alimentá-la por minha vez

Voltando-se para Violaine.

Com essa preciosa semente.
JACQUES HURY, torcendo as mãos — Violaine, Violaine! Tu me escutas?
MARA, avançando impetuosamente — Ela não ouve. Tua voz não chega até ela! Mas eu, eu saberei fazer que ela me escute.

Em voz baixa e forte.

Violaine! Violaine! Sou tua irmã! Tu me escutas, Violaine?
JACQUES HURY — A mão! Eu vi a mão mexer!
MARA — Ah! ah! Estás vendo? Ela escuta. Ela escutou!
Essa voz, essa mesma voz de sua irmã que um dia no Natal lhe violou as entranhas!
JACQUES HURY — Meu pai! Meu pai! Ela está louca. Não ouves o que está dizendo?
Esse milagre... essa criança... eu estou louco... ela está louca!
ANNE VERCORS — Ela disse a verdade. Eu sei de tudo.
MARA — Não, não! Eu não estou louca. E ela — olhai! — ela ouve, ela sabe, ela entendeu!
Pan pan pan!
Que dizia o pai agora mesmo, que dizia no primeiro toque do Angelus?
ANNE VERCORS — O Anjo do Senhor anunciou a Maria e ela concebeu do Espírito Santo.
MARA — E o que é, o que é que diz o segundo toque?
ANNE VERCORS — Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa vontade.
MARA — E que diz o terceiro?
ANNE VERCORS — E o Verbo se fez carne e habitou entre nós.
MARA — E o Verbo se fez carne e habitou entre nós.
E o grito de Mara, e o apelo de Mara, e o rugido de Mara, ele também, — ele se fez carne no seio desse horror, no seio dessa inimiga, no seio dessa pessoa em ruína, no seio dessa abominável leprosa!
E essa filha que ela me havia tomado,
Gritei tão forte do fundo das minhas entranhas, que por fim a arranquei, arranquei-a desse túmulo vivo!
Essa criança que eu gerei, foi ela que a pos no mundo!
JACQUES HURY — Foi ela que fez aquilo?
MARA — Tu sabes tudo! Sim, aquela noite, a noite de Natal!
Aubaine, eu disse que ela estava doente, mas não era verdade: estava morta! Um corpinho gelado!
E tu dizes que foi ela que fez aquilo?
Foi Deus, foi Deus que o fez! E afinal de contas eu fui a mais forte! Foi Mara, Mara que fez aquilo!

Jacques Hury solta uma espécie de grito e, repelindo violentamente Mara, se atira aos pés de Violaine.

MARA — Ele se atira aos pés dessa Violaine que o traiu.
(E essa terra que bastava para todos, não era boa para ela!)
E a palavra que jurara com seus lábios, ela a pos entre os lábios do leproso.
JACQUES HURY — Cala-te.
MARA — É só a ela que ele ama, só a ela que todos amam. É só a ela que amam, e seu pai a abandona, e sua mãe a aconselha lindamente, e o noivo... como acreditou no que dizia!
O amor que lhe tinham era isso. O meu é de outra espécie.
JACQUES HURY — Se é! Foste tu que conduziste Violaine até o buraco de areia.
A mão esquerda empurrou enquanto a direita guiava.
MARA — Ele sabe. Nada lhe escapa!
JACQUES HURY — Disse ou não a verdade?
MARA — E deveria então esse homem que me pertence, e que é meu, ser partido em dois, metade aqui e outra metade no bosque da leprosa?
E seria preciso que minha filha, que é minha, fosse partida ao meio e tivesse duas mães, uma para o corpo, outra para a alma?
Fui eu! Fui eu que fiz tudo isto!

Surdamente, e acabrunhada, fitando as mãos.

Fui eu! Fui eu que fiz tudo isto!
ANNE VERCORS — Não, Mara, não foste tu, mas uma outra que te possuía. Mara, minha filha, tu sofres; eu quisera bem consolar-te!
Ele voltou. Ele será sempre teu, esse pai que tu outrora amavas! Mara, Violaine! Ó minhas duas filhinhas! Ó meus dois bebês nos meus braços! Todas duas, eu vos amava, e vossos dois corações, juntinhos, faziam um com o meu.
MARA, num grito dilacerante — Pai, pai, minha filha estava morta e foi ela que a ressuscitou!

VOZ DE CRIANÇA FORA:

Margarida, eu bem preciso
Do teu sapato cinzento
Para ir ao Paraíso.
Faz bom tempo, Margarida,
Faz bom tempo por aqui.
Já escuto o passarinho:
Pi i i i !

No meio da canção Violaine levanta lentamente o braço e o deixa cair ao lado de Jacques.

VIOLAINE — Pai, é bela essa canção, e a reconheço. É a que cantávamos outrora em busca das amoras, Mara,
Ao longo das sebes!
ANNE VERCORS — Violaine, Jacques está aí, perto de ti.
VIOLAINE — Estará ainda zangado?
ANNE VERCORS — Não está mais zangado.
VIOLAINE, pondo-lhe a mão sobre a cabeça
— Bom dia, Jacques!
JACQUES HURY, surdamente — Ave, ó minha noiva entre os ramos em flor!
VIOLAINE — Pai, dize-lhe que eu o amo.
ANNE VERCORS — Ele também, jamais deixou de amar-te.
VIOLAINE — Pai, dize-lhe que eu o amo!...
ANNE VERCORS — Ouve como ele nada diz...
VIOLAINE — Pedro de Craon...
ANNE VERCORS — Pedro de Craon?
VIOLAINE — Pedro de Craon, dize-lhe que o amo. Esse beijo que eu lhe dei, é preciso que ele faça com ele uma igreja.
ANNE VERCORS — Já está, Violaine, começada.
VIOLAINE — E Mara, ela me ama! Ela só, foi a única que acreditou em mim!
ANNE VERCORS — Jacques, escuta bem!
VIOLAINE — Essa criança que ela me deu, essa criança que me nasceu entre os braços!
Ah, meu Deus, como era bom, como era doce, Mara! Ah! como obedeceu direitinho, como fez tudo o que devia fazer!
Pai, ó pai, como é doce, como é terrível pôr uma alma no mundo!
ANNE VERCORS — Tu falas deste mundo, Violaine, ou falas já do outro?
VIOLAINE — Dos dois, eu eu digo que são um só, e que a misercórdia de Deus é imensa!
JACQUES HURY — Acabou-se para mim a felicidade.
VIOLAINE — Acabou-se, que importância tem isto?
Não foi a felicidade que te foi prometida: trabalha, é tudo o que te pedem.
Interroga a velha terra, e ela sempre responderá com o pão e o vinho.
Mas eu, eu acabei, e passo adiante.
Que será um dia longe de mim? Logo terá passado.
E então, quando chegar a tua vez, e que vires a grande porta estalar e mover-se,
Sou eu que estou do outro lado.
JACQUES HURY — Ave, ó minha noiva entre os ramos em flor!
VIOLAINE — Tu te lembras?
Jacques! Bom dia, Jacques!

Entram então todos os servidores da fazenda, e acendem as velas que trazem.

VIOLAINE — Jacques, ainda estás aqui?
JACQUES HURY — Estou, Violaine.
VIOLAINE — Este ano foi bom e o trigo belo?
JACQUES HURY — Tanto que não se sabe mais onde metê-lo.
VIOLAINE — Ah!
Como é bela uma grande colheita!
Sim, mesmo agora, eu me lembro, e acho que é belo!
JACQUES HURY — Sim, Violaine.
VIOLAINE — Como é belo viver (com profundo fervor) e como a glória de Deus é imensa!
JACQUES HURY — Vive, então, Violaine, e fica conosco!
VIOLAINE, retombando no leito — Mas como é bom também
Morrer, quando se acaba bem, e sobre nós se estende pouco a pouco
O obscurecimento de uma sombra escura.

Silêncio.

Ouve-se o ANGELUS (vozes):

l. Pax pax pax
2. Pax pax pax
3. Pax pax pax

Gloria im excelsis Deo et in terra pax hominibus bonoe voluntatis.

Loe ta re
Loe ta re
Loe ta re!

Anne Vercors vai buscar Mara e a conduz pela mão perto de Violaine, em face de Jacques. Com a mão esquerda ele toma a mão de Jacques Hury e a levanta a meia altura. Nesse instante Mara desprende a sua e toma a de Jacques, que permanece de cabeça baixa, olhando Violaine. O pai encerra as duas mãos nas suas, e faz uma solene elevação.
Nesse instante Jacques Hury ergue a cabeça e fita Mara que tem os olhos duramente fixados nele. Os sinos tocam.

EXPLICIT

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Resenha crítica/1

O sentido do eterno

A árvore da vida, de Terrence Malick, é aquele tipo de filme que costuma resistir à análise. Se o pegamos por um lado, escapa pelo outro. Se nos concentramos em um tema, deixamos escapar o todo. Se vamos ao conjunto, podemos deixar fugir os detalhes, tão importantes nesta obra. O fato de Malick sabiamente não conceder entrevistas nos deixa livres para interpretar a obra como bem entendermos e dentro dos limites da nossa capacidade. A nada somos induzidos, a não ser pelo estranho poder que emana da tela quando vemos este filme.

Por um lado, é uma obra sensorial, isto é, que nos atinge, em primeiro lugar, pela força das imagens. Em especial aquelas do começo do mundo, em que são traçadas as linhas gerais do Big Bang, do nascimento do universo, a formação das galáxias e dos planetas, o surgimento da vida e a evolução. Quanta ambição, descrever em imagens algo que é da ordem do imponderável, pensável talvez em termos de hipóteses e equações da física.

Depois, há o fator humano, em sua escala comparativamente mínima em relação ao universo. Dentro desse microcosmo, uma escala ainda mais reduzida — uma família norte-americana, nos anos 1950. Uma tragédia, a morte de uma criança. Depois, a descrição de uma infância dura, passada com um pai autoritário e a mãe cheia de amor. Temos alternâncias dentro do tempo, com essa criança, agora adulta, em sua vida vazia num mundo que perdeu a transcendência.

O homem é esse nada diante do universo. Mas o homem é esse universo em si mesmo, quando visto da sua perspectiva. Poeira cósmica e ser divino, ao mesmo tempo. Infinitamente pequeno e infinitamente grande, dependendo do ponto de vista que o contempla.

É um filme religioso? Em certo sentido, sim, a começar pelo título, que evoca a Bíblia e a árvore que estaria no centro do Jardim do Éden. Mas é também de uma religiosidade especial, metafísica, por assim dizer. Como se Malick descrevesse, de forma exaustiva, a humana condição (em especial a infância de Jack) para buscar alguma coisa que vai além dela. No plano espiritual, talvez. No terreno da filosofia, como arte da preparação da morte. Ou, ainda na dimensão de uma metapsicologia que pressinta a expansão do Eu em sua dimensão cósmica.

Como todo filme de amplo espectro, A árvore da vida não se reduz a qualquer dessas circunstâncias. É possível que englobe todas e seja como uma daquelas bonequinhas russas, que esconde outra em seu interior e assim sucessivamente. Poderíamos interpretá-lo intensivamente, e ainda guardaria novas camadas de compreensão. Aliás, essa é uma das marcas da grande obra. É inesgotável. A árvore da vida é como a perplexidade que sente o homem ao contemplar estrelas numa noite fria. A presença do eterno e do infinito pode lhe causar tremor. Mas também esperança, quem sabe?

A ÁRVORE DA VIDA
Título original: The Tree of Life. Direção: Terrence Malick. Gênero: Drama (EUA/2011, 139 minutos). Censura: 10 anos.

(extraído de: O Estado de S. Paulo, 12 ago. 2011)


Contraditória e graciosa

Apesar de figurar entre o melhor realismo sulista norte-americano, ao lado de William Faulkner e Tennessee Williams, Flannery O’Connor pode evocar primeiro lembranças de Guimarães Rosa, Clarice Lispector e até de Frida Kahlo. Ao primeiro contato com sua breve mas poderosa obra, salta aos olhos o uso da linguagem do sul dos EUA dos anos 1950-60, especialmente a usada pelos negros, que ela faz questão de marcar alterando a escrita das palavras. Marry (casar) se torna “mah”, e assim vai, numa valorização do regional em que nosso modernista mineiro primou. A própria Flannery falava o “dialeto” da Geórgia quando chegou à Universidade de Iowa, o que fez um constrangido professor lhe pedir que escrevesse o que estava querendo dizer, porque ele não a entendia.

O desfecho das narrativas, sempre marcado por epifanias, pode lembrar Clarice Lispector, a “bruxa literária” do Brasil. Não por acaso, uma das últimas histórias de Contos completos, lançado há um ano pela Cosac Naify, chama-se “Revelação”.

Já a vida pessoal da autora lembra a pintora mexicana pela presença da dor física. Flannery morreu aos 39 anos de lúpus eritematoso, doença inflamatória das juntas e dos músculos, muito dolorosa, que também matou seu pai. Durante seus últimos 13 anos, viveu só com a mãe na fazenda da família em Milledgeville, na Geórgia.

Numa vida campestre solitária em que seu hobby era colecionar aves, parece natural que a maioria de suas personagens fossem solteiras ou viúvas, defeituosas ou doentes, e, em sua maioria, proprietárias de terra, todas de fé protestante.

Figuras que lembram sua mãe, Regina, estão em diversos contos, nos quais as personagens sempre acabam mortas, característica que levou uma amiga da autora a acusá-la de matricídio. “Ela não lê nenhum deles”, garantiu-lhe Flannery.

A violência aparece num contexto trágico, mas sempre como fruto do livre-arbítrio, não do destino. “Frequentemente, a tragédia decorre da ignorância, mas nunca é perdoada, justificada ou poetizada por um desígnio divino transcendente”, explica Cristóvão Tezza no posfácio que fez para a edição de seu livro de contos no Brasil.

Quando começou a enviar manuscritos para publicação, os primeiros editores a confundiam com um homem cheio de vícios. O que pensar de histórias como “Uma vista da mata”, em que uma garota de 9 anos salta com unhas e dentes para cima do avô, que lhe racha o crânio em uma pedra, ou da filósofa com uma perna de pau, que decide humilhar um vendedor simplório de Bíblias após deixar-se seduzir, mas acaba tendo a prótese roubada?

Não é de espantar que a obra da escritora nunca tenha sido totalmente aceita no meio católico, chegando a figurar em listas de livros proibidos de alguns colégios.

O que surpreende é saber que Flannery, católica de altos pensamentos teológicos, tinha fé e vivia dela. “Que a crença em Cristo seja para alguns um assunto de vida ou morte tem sido uma pedra de tropeço para leitores que desejariam pensar nisso como algo sem maiores consequências”, escreveu ela no prefácio de uma edição de seu romance Wise Blood (Sangue sábio, em tradução livre), em que ela define o protagonista como um cristão malgré lui.

Para sorte desse mesmo leitor, ela não atrelou sua ficção ao proselitismo. Pelo contrário, buscava a narrativa perfeita, reescrevendo constantemente. “O dia do Juízo Final”, seu último conto, é uma nova versão de “O gerânio”, seu primeiro.

“Ela sempre, sempre lutava para achar a imagem redentora, a palavra redentora que iria trazer o significado da experiência”, escreveu a autora Joy Williams em sua resenha da biografia recente escrita por Brad Gooch.

Apesar de seu estilo centrado na perfeição da escrita, quem deseja encontra o cristianismo de O’Connor em meio ao rude tratamento que dispensa às personagens grotescas assassinadas por ela.

“Os contos de Miss O’Connor são todos sobre a operação da graça sobrenatural nas vidas de homens e mulheres naturais”, escreveu a romancista Caroline Gordon.

Graça como a encontrada no conto “O negro artificial”, em que um avô roceiro leva o neto de 15 anos, com quem vive só numa cabana, para conhecer a cidade grande. Quer ensinar o garoto a ser humilde, mas acabam ambos passando por experiências de rejeição, reaproximação um do outro e perdão.

Em meio a tantas facetas, uma das certezas sobre Flannery, essa mulher cheia de contradições, é que ela respirava a literatura. “Preciso escrever para descobrir o que estou fazendo. Como a velhinha, não sei muito bem o que pensar até ver o que digo.”

Serviço: Contos completos, de Flannery O’Connor. Cosac Naify, 720 págs., R$ 79.

(extraído de: Gazeta do Povo, 26 abr. 2009)

quarta-feira, 18 de abril de 2012

9EF: Editorial/1

O surto populista de Cristina

Só faltou a presidente argentina Cristina Kirchner assomar aos balcões da Casa Rosada, a sede do governo nacional no coração de Buenos Aires, diante de uma multidão adrede arregimentada em estado de apoteose cívica, para completar o regressivo espetáculo de exaltação nacionalista do anúncio da reestatização da YPF, a maior empresa petrolífera do país, privatizada em 1993 e adquirida pela Repsol espanhola em 1999. Tudo o mais, porém, seguiu o mofado figurino do auge da era peronista, nos anos 1950. Por volta do meio-dia de anteontem, no salão nobre do palácio, tendo às costas uma imagem de Evita Perón e à frente uma siderada plateia de militantes justicialistas, entoando cânticos e palavras de ordem dos viejos tiempos, a presidenta, como exige ser chamada, proclamou a recuperação da "soberania petrolífera" argentina. Desnecessário dizer que o show de arrebatamento patriótico e fabulação econômica foi transmitido em rede nacional.

Naturalmente, ninguém teria a insolência de lembrar que a então senadora Cristina, bem como o seu marido Néstor, à época governador da província patagônia de Santa Cruz, aplaudiram a desestatização da YPF promovida pelo presidente Carlos Menem, o correligionário peronista que guinou para o neoliberalismo sem jamais perder o ardor populista. A esta altura, de todo modo, há paradoxos mais importantes a ressaltar. O principal é o que separa a demagógica celebração da reconquista da soberania argentina no setor de petróleo do estado crítico das finanças nacionais. Desde o calote da dívida em 2001, o país perdeu a confiança dos mercados internacionais de capital. Os descalabros da política econômica kirchnerista, entre os quais avulta uma indisfarçável inflação da ordem de 25%, obrigaram o governo a decretar em outubro passado o controle do câmbio  engessando, em consequência, as importações. Só naquele mês fugiram do país US$ 3,4 bilhões. No ano, já deixaram o país US$ 22,5 bilhões.

O Tesouro argentino não tem a mais remota condição de bancar os investimentos que a Repsol é acusada de ter deixado de fazer para devolver ao país a autossuficiência no setor energético - o argumento invocado por Cristina para justificar a nacionalização da YPF, que passará a ser controlada pelo governo federal, com 26,01% das ações, e pelas províncias produtoras de hidrocarbonetos, com 24,99%. Dos 51% que detinha, restarão à Repsol 6,43%. Ora, ela deixou de investir na proporção desejada pelo governo porque o próprio governo a privou dos meios de fazê-lo. O Estado, por exemplo, pagava-lhe por barril extraído uma fração do seu valor de mercado (US$ 42) e embolsava a diferença. Depois de o governo espanhol prometer, com o apoio da União Europeia, fortes represálias ao "claríssimo gesto de hostilidade" de Buenos Aires, como disse o ministro da Indústria José Manuel Soria, o presidente da Repsol, Antonio Brufau, acusou a Casa Rosada de forçar a baixa das ações da YPF para comprá-las a preço vil. 

Ele atribuiu a desapropriação à intenção de Cristina de açambarcar a exploração do riquíssimo Campo de Vaca Muerta, na província de Neuquén, descoberto e posto a operar pela Repsol no ano passado. As jazidas de óleo e gás de xisto ali são estimadas em 22,5 bilhões de barris equivalentes, ou pouco menos da metade das reservas brasileiras no pré-sal. Ora, depois da violência jurídica perpetrada pelo governo argentino, no quadro de um surto nacionalista que começou com a exumação da demanda pelas "Malvinas argentinas", passados 30 anos da sua fracassada invasão, com que parceiros o país poderá contar para voltar ao seu passado de autonomia e superávits comerciais na área de energia? Cristina diz que quer implantar o "modelo brasileiro" no setor, numa alusão aos 51% que o Estado detém na Petrobrás, mas hostilizou a empresa ao cancelar a concessão de que dispunha em Neuquén, onde já tinha investido US$ 10 milhões.

A única — e pervertida  lógica pela qual Cristina parece pautar-se, ainda mais depois de sua reeleição no ano passado com um formidável estoque de votos, é a do populismo crasso. O pior é que a Argentina já viu diversas versões deste filme. Nenhuma terminou bem.

(extraído de: O Estado de S. Paulo, 18 abr. 2012. Notas e Informações, p. A3)




Estamos no lucro?

Proveito, ganho, avareza, métrica de competência, cobiça, satisfação pessoal, tempo extra de vida, usura, felicidade, vida à custa do outro, distribuição equilibrada, acumulação, progresso... Como sempre, nossa maneira de abordar o lucro, tema desta edição, procurou abrir o compasso na amplitude máxima e, mais uma vez, fazer jus àquele que talvez seja um dos melhores extratos para condensar tudo que fazemos por aqui: diversidade.

Pensar sobre dinheiro não é algo novo para nós. Há dois anos, por exemplo, além de falar sobre, ousamos dar dinheiro literalmente. Notas autênticas de R$ 2 foram coladas nas capas de um reparte dos 35 mil exemplares postos à venda em bancas e livrarias. A ideia era estudar a reação das pessoas diante do dinheiro real colocado num contexto de certa maneira irreal. As consequências e a repercussão foram interessantíssimas, já que convidávamos os leitores a fazer algo útil com suas notas de R$ 2 ou mesmo devolvê-las a nós, para que fossem investidas em projetos sociais confiáveis.

Um pouco antes, em 2005, trazíamos em nossas páginas, com boa dose de ineditismo, conceitos que já vinham sendo estudados por algumas das mais respeitáveis cabeças do universo acadêmico ao redor do planeta e que eram aplicados na prática em um pequeno país encravado no meio dos Himalaias e sobre o qual sabíamos (e até hoje sabemos) muito pouco aqui no Brasil. A noção de que o mundo implorava com urgência máxima por novos modelos de gestão de pessoas, comunidades, recursos e países, que levassem em conta na hora de definir e medir o que é desenvolvimento, algo além do infantil e precário conceito de Produto Interno Bruto, nos parecia já àquela altura algo evidente. Além de lançar uma contundente intervenção em forma de campanha que lançava a instigante pergunta “Você é feliz?”, tratamos de publicar, por seguidas edições, todo o conteúdo que conseguimos acessar, não só sobre o conceito de Felicidade Interna Bruta cunhado e praticado pelo governo do Butão (então visto com enormes reservas pelos economistas e observadores convencionais), mas inúmeras e variadas ideias sobre maneiras mais equilibradas e inteligentes de lidar com o futuro das grandes aglomerações de pessoas do nosso tempo e planeta.

É divertido e ao mesmo tempo alentador ver, poucos dias antes do fechamento da presente edição da Trip, cerca de sete anos depois de nossa primeira edição sobre o assunto, uma notícia ocupando espaço destacado na capa da edição dominical de 23 de março do jornal O Estado de S. Paulo:

“Índice vai medir felicidade do brasileiro: FGV-SP elabora a metodologia do novo índice, a Felicidade Interna Bruta; intenção é fornecer os resultados ao governo federal para auxiliar no desenvolvimento de políticas públicas”.

A Fundação Getúlio Vargas é considerada ao mesmo tempo um dos mais importantes centros mundiais de excelência nos assuntos ligados à gestão pública e privada e uma espécie de reduto da administração clássica brasileira, ligada aos grandes empresários e grupos nacionais. Ver uma instituição desse calibre e com essas características entender que o modelo antigo de compreensão do mundo é algo que ruiu e mover-se na direção do pensamento inovador é algo extremamente relevante e animador.

Talvez estejamos no lucro, porque iniciativas como a descrita acima apontam concretamente para mudanças de atitude importantes num mundo que, apesar de parecer ruir, aparentemente ainda não o fez de forma irreversível. Mas o fato é que, depois de tantos anos perguntando (como voltamos a fazer insistentemente na edição em suas mãos) às mais distintas fontes sobre suas maneiras de enxergar dinheiro, lucro, trabalho, felicidade e correlatos, vale repetir aqui uma analogia simples e precisa elaborada sobre a base do pensamento do budismo tibetano:

O dinheiro é uma energia como a água. É importante que venha de uma fonte limpa, que tenha seu curso garantido e respeitado, que possamos com nosso trabalho e nossas atitudes garantir que ela possa fluir naturalmente com vigor, irrigando todas as partes do terreno para que surjam frutos e alimentos para todos. E, principalmente, que não seja excessivamente desviada e represada, porque essa energia é muito forte e as consequências nesse caso costumam ser devastadoras.

Paulo Anis Lima, editor

(extraído de: Trip, 12 abr. 2012)

1EM: Texto descritivo/1

J. K. Rowling

A muitos quilômetros de distância, a névoa gelada que comprimia as vidraças do Primeiro-Ministro flutuava sobre um rio sujo que serpeava entre barrancos cobertos de mato e lixo. Uma enorme chaminé, relíquia de uma fábrica fechada, erguia-se sombria e agourenta. O silêncio total era quebrado apenas pelo rumorejo da água escura, e não havia vestígio de vida exceto por uma raposa esquelética que descera até o barranco na esperança de farejar um saco de peixe com fritas descartado no capim alto. [...]

Depararam com uma cena de total devastação. Um relógio de carrilhão jazia aos seus pés, o mostrador estilhaçado, o pêndulo, mais adiante, como uma espada abandonada. O piano estava virado de lado, as teclas espalhadas pelo chão. Os destroços de um lustre caído brilhavam a pequena distância. Almofadas murchas, as penas do enchimento saindo pelos rasgos laterais; cacos de vidro e louça cobriam tudo como se fossem pó. Dumbledore ergueu a varinha mais alto, para a luz clarear as paredes, cujo papel tinha manchas vermelho-escuras e gelatinosas.

(extraído de: ROWLING, J. K. Harry Potter e o enigma do Príncipe. Tradução de Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. p. 21, 53)



Euclides da Cunha

Monte Santo, afinal, resume-se naquele largo. Ali desembocam pequenas ruas, descendo umas em ladeiras para larga sanga apaulada; abrindo outras para a várzea; outras embatendo, sem saídas, contra a serra.

Esta por sua vez, de perto, perde parte do encanto. Parece diminuir de altitude. Sem mais o perfil regular que assume a distância, tem, revestindo-lhe as encostas, uma flora de vivacidade inexplicável, arraigada na pedra, brotando pelas frinchas dos estratos e vivendo apenas das reações maravilhosas da luz. As capelinhas, tão brancas de longe, por sua vez aparecem exíguas e descuradas. E a estrada ciclópica de muros laterais, de alvenaria, a desabarem em certos trechos, cheia de degraus fendidos, tortuosa, lembra uma enorme escadaria em ruínas. O povoado triste e de todo decadente reflete o mesmo abandono, traindo os desalentos de uma raça que morre, desconhecida à Historia, entre paredes de taipa. Nada recorda o encanto clássico das aldeias. As casas baixas, unidas umas contra as outras, feitas à feição dos acidentes do solo, têm todas a mesma forma — tetos deprimidos sobre quatro muros de barro — gizadas todas por esse estilo brutalmente chato a que tanto se afeiçoavam os primitivos colonizadores. Algumas devem ter cem anos. As mais novas, copiando-lhes, linha a linha, os contornos desgraciosos, por sua vez nascem velhas.

Deste modo, Monte Santo surge desgracioso dentro de uma natureza que lhe cria em roda — como um parênteses naquele sertão aspérrimo — situação aprazível e ridente.

(extraído de: CUNHA, Euclides da. Os sertões. Edição crítica por Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Brasiliense; Secretaria do Estado da Cultura, 1985. p. 289-290)



Aluísio Azevedo

Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.

Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.

A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.

Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia.

Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pelo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.

O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.

(extraído de: AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 10. ed. São Paulo: Ática, 1981. p. 28-29)