sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Oficina de redação 9: exemplos de textos narrativos

Fernando Sabino

Ao longe apontava a primeira fumacinha, já conhecida. Viramundo desceu o barranco aos pulos, enquanto a molecada se ajeitava lá em cima. Escorregou para o leito da estrada, ouviu no ar o ruído da locomotiva cada vez mais forte. Ela já surgia lá longe, na curva, apenas uma mancha negra aumentando, aumentando. Geraldo Viramundo saltou sobre os trilhos, pulou dois dormentes e se postou sobre o terceiro, firme, pernas separadas, bracinhos erguidos. Os meninos lá em cima gritavam de horror, alguns fugiram, outros esconderam a cara.

— Sai, Geraldo! Sai! — berrou apavorado o Bertoldo, seu irmão.

A máquina, ameaçadoramente visível e crescendo como um demônio, apitou pela primeira vez. Depois apitou outra, mais outra — Geraldo Viramundo olhou para ela pela última vez e fechou os olhos, sentindo o dormente vibrar sob seus pés. O apito agora era continuado, as rodas rangiam nos trilhos, o barulho perdia o ritmo numa desordem de silvos e entrechoque de ferros. Geraldo, braços ainda erguidos, lembrou-se de prometer vinte ave-marias e vinte padre-nossos se o trem parasse — não se ele não morresse, mas se o trem parasse — e foi a última coisa de que se lembrou. Os freios rinchavam doidamente, a máquina esguichava fumaça e vapor por todos os lados, perdendo velocidade, já se podia distinguir o braço do maquinista do lado de fora em frenéticos sinais. Embora quase devagar, a locomotiva, a resfolegar como um touro enfurecido, já estava tremendamente perto quando se deteve, num arranque último e mais forte, que fez se chocarem com violência os carros uns nos outros do primeiro ao último.

No alto do barranco os meninos naquela sarabanda de emoção espiavam, pálidos, boquiabertos, desfigurados — os poucos que tiveram coragem de olhar. Geraldo Viramundo abriu devagarinho os olhos e viu de perto, a menos de dez metros, aquela máquina preta e enorme, avassaladora, a muralha de ferro do limpa-trilhos, o vidro do farol brilhando como o olho de Deus, aquele arfar incessante do monstro derrotado. Sentiu subir dentro de si uma onda de entusiasmo, agitou loucamente os braços, pulando sobre o dormente:

— Ele parou! Ele parou, pessoal! Ele parou!

(extraído de: SABINO, F. O grande mentecapto: relato das aventuras e desventuras de Viramundo e de suas inenarráveis peregrinações. 18. ed. Rio de Janeiro: Record, 1983. p. 19-20)


Clarice Lispector

Afinal largou a pá, pegou com delicadeza o cachorro desconhecido e pousou-o na cova.

Que cara estranha o cão tinha. Quando com um choque descobrira o cão morto numa esquina, a ideia de enterrá-lo tornara seu coração tão pesado e surpreendido, que ele nem sequer tivera olhos para aquele focinho duro e de baba seca. Era um cão estranho e objetivo.

O cão era um pouco mais alto que o buraco cavado e depois de coberto com terra seria uma excrescência apenas sensível do planalto. Era assim precisamente que ele queria. Cobriu o cão com terra e aplainou-a com as mãos, sentindo com atenção e prazer sua forma nas palmas como se o alisasse várias vezes. O cão agora era apenas uma aparência do terreno.

Então o homem se levantou, sacudiu a terra das mãos, e não olhou nenhuma vez mais a cova. Pensou com certo gosto: acho que fiz tudo. Deu um suspiro fundo, e um sorriso inocente de libertação. Sim, fizera tudo. Seu crime fora punido e ele estava livre.

E agora ele podia pensar livremente no verdadeiro cão. Pôs-se então imediatamente a pensar no verdadeiro cão, o que ele evitara até agora. O verdadeiro cão que agora mesmo devia vagar perplexo pelas ruas do outro município, farejando aquela cidade onde ele não tinha mais dono.

(extraído de: LISPECTOR, C. O crime do professor de matemática. In: Laços de família: contos. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 140-141)


J. R. R. Tolkien

Enquanto eles cantavam, o hobbit sentiu agitar-se dentro de si o amor por coisas belas feitas por mãos, com habilidade e com mágica, um amor feroz e ciumento, o desejo dos corações dos anões. Então alguma coisa dos Tûk despertou no seu íntimo, e ele desejou ir ver as grandes montanhas, e ouvir os pinheiros e as cachoeiras, explorar as cavernas e usar uma espada ao invés de uma bengala. Olhou pela janela. As estrelas apareciam num céu escuro sobre as árvores. Pensou nas joias dos anões brilhando em cavernas escuras. De repente, na floresta além do Água uma chama surgiu — provavelmente alguém acendendo uma fogueira — e ele pensou em dragões saqueadores alojando-se em sua calma Colina e transformando-a toda em chamas. Sentiu um tremor e muito rapidamente voltou a ser o Sr. Bolseiro de Bolsão, Sob-a-Colina, novamente.

Levantou-se tremendo. Estava muito pouco disposto a ir buscar uma lamparina, e muito disposto a fingir que ia fazê-lo e se esconder atrás dos barris de cerveja na adega e não sair mais de lá até que todos os anões tivessem ido embora. De repente descobriu que toda a música e cantoria haviam parado, e todos estavam olhando para ele com olhos que brilhavam no escuro.

(extraído de: TOLKIEN, J. R. R. O hobbit. Tradução de Lenita Maria Rímoli Esteves e Almiro Pisetta. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. cap. 1, p. 15)

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