Machado de Assis
O nascimento da crônica (1877)
Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.
Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.
Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.
Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.
Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contudo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.
Não afirmo sem prova.
Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!
Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, e daí às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?
(extraído de: ASSIS, J. M. M. Crônicas escolhidas. São Paulo: Ática, 1994. p. 13)
Otto Lara Resende
A rua, a fila, o acaso (1992)
Eu ia dando a minha voltinha num silêncio interior de paz. Está difícil flanar nas ruas de hoje. Muito barulho, carros voando ou atravancando a calçada, anda sobrecarregado o ar que respiramos. Mas há sempre o que ver, se levamos olhos desprevenidos, de simpatia. Me lembrei do tempo em que o pai de família saía depois do jantar pra fazer o quilo. A expressão tem a ver com o mistério da nossa usina interior.
Com o perdão da palavra, tem a ver com as nossas tripas. Hoje é o cooper, que traz um afã de competição. Cronometrado e exibido, tira o fôlego e impede a conversinha mole. É mais uma fábrica de ansiedade nesta época que fabrica estresse. Pois ia eu andando pra clarear as ideias, ou pra pensar em nada. Nessa hora de entrega e de inocência é que acontece a iluminação. A luzinha do entendimento acende onde quer.
Sem nenhum objetivo, eu ia bem satisfeitinho na minha disponibilidade. Aberto a qualquer convite, podia comprar um bombom, ou uma flor. Ou uma dessas canetinhas que acertam comigo e, bem ordinária, me traz um estremecimento de colegial. A gente sabe que o endereço da felicidade é no passado e é mentira. Mas é bom que exista, a felicidade. Nem que seja um momentinho só. Tão rico que dá pra ir vivendo. E se renova com qualquer surpresa boba. Encontrar por exemplo na banca uma revista fútil e dar com a foto daquela moça bonita. Olhar seus olhos e entendê-los, olhos adentro.
A vida é um mundo de possibilidades. Atração e repulsa, afinidades. Convergência e divergência. Nessa altura, as minhas pernas tinham me levado pro mundo da Lua. Quando dei comigo de volta, estava espiando uma fila que coleava pela calçada. Curioso: etimologicamente, aposentado é quem se recolhe aos aposentos. De repente, os aposentados saíram da toca e estão na rua, pacientes em fila ou irados aos magotes.
Mas aquela fila não podia ser de aposentados. Tinha uma moça de short e pernas fortes de atleta. E muitos jovens. E vários boys. Um pequeno interesse, receber um dinheirinho, uma pequena obrigação, pagar uma conta, juntou na fila aquele pessoal todo. Misterioso caminho, esse, que aproxima as pessoas por um instante e depois as separa. Há de ver que ali estavam lado a lado duas almas que se procuram e, distraídas, disso não se deram conta. O acaso, o destino, quanta coisa passa por uma cabeça vadia! Ou por um frívolo coração.
(extraído de: RESENDE, O. L. Bom dia para nascer. Crônicas. Seleção de Matinas Suzuki Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 36)
Luís Fernando Veríssimo
Os pés do Dr. Ebbesmeyer (2008)
Não sei se você leu. A polícia de Vancouver, no Canadá, está investigando um mistério: o aparecimento de três pés humanos em praias de ilhas da região, num curto espaço de tempo. Pés direitos. E os três vestindo tênis. Não foi revelada a marca dos tênis, talvez para não alimentar a hipótese de se tratar do lançamento de alguma campanha publicitária macabra (“Você se decompõe, seu tênis não”, ou “Não caia na água sem eles”).
São muitas as especulações sobre a origem dos pés. Seriam de vítimas de afogamento ou acidentes de barco ou avião. Só os pés teriam sobrado depois que a água e os peixes acabaram com o resto. Ou seriam vítimas de algum matador e desmembrador em série. É possível que já estejam procurando fetichistas conhecidos com serra elétrica em casa. Não sei.
O que mais me intrigou na notícia foi o depoimento de um professor de Oceanografia da Universidade de Washington chamado Curtis Ebbesmeyer, descrito como um especialista em objetos flutuantes. O Dr. Ebbesmeyer não tinha opinião sobre de onde saíram os três pés mas tinha uma explicação para o fato de serem só pés direitos. Pelo formato dos tênis, os de pé direito flutuam naturalmente para um lado, os de pé esquerdo para o outro. Assim, não é improvável que apareçam pés esquerdos correspondentes aos pés já descobertos, mas em praias opostas, apesar de terem a mesma origem. Como autoridade em objetos flutuantes, o Dr. Ebbesmeyer tem a teoria pronta para sustentar sua tese.
Não sei que cara tem o professor, ou que ator o interpretaria quando fizessem o filme, mas posso imaginar as gozações que ele sofria no meio acadêmico por causa da sua especialização e das suas teorias. Aquela sua ideia de que um hipotético par de tênis posto numa superfície de água se separará, e flutuará um para um lado e outro para o outro de acordo com o seu formato, devia valer algumas piadas condescendentes para o velho Curtis, que nunca antes na sua carreira fora consultado sobre sua obsessão, as idiossincrasias dos objetos flutuantes. Até surgir o mistério dos pés direitos para consagrá-lo.
Ou então o próprio Dr. Ebbesmeyer teria, um dia, decidido mostrar aos incrédulos que o atormentavam que sua teoria não era risível, que ele não era o louco que imaginavam.
E providenciara os pés para o seu experimento.
Eu, se fosse a polícia canadense, veria se o Dr. Ebbesmeyer não tem uma serra elétrica.
(extraído de: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2008/03/09/os-pes-do-dr-ebbesmeyer-92956.asp)
Lúcia Guimarães
A profundidade do pires (2011)
A personagem coberta de griffes tinha acabado de ficar viúva, quando reconheceu: "Eu não tenho profundidade para ficar tão triste assim". A plateia dava gargalhadas no Teatro Brooks Atkinson, durante a matinê da temporada de prévias de Relatively Speaking. Os três atos de comédia, escritos por Ethan Coen, Elaine May e Woody Allen, são reunidos numa produção dirigida pelo estimado John Turturro. A estreia é no dia 20 de outubro e, se você, que lembra com saudades da neurose judaico-nova-iorquina de Woody Allen, der com os costados nesta ilha, não deve perder. Mas a viúva perua da peça George Está Morto foi criada por Elaine May, cujo incomparável timing cômico nem sempre viaja bem porque, quem sabe, ela escreve pensando nos tempos em que era parte do duo com Mike Nichols, sim, o diretor. Os dois mudaram a história da improvisação nos Estados Unidos, no final da década de 50.
A viúva Doreen, com seus mais de 60 anos, é uma mulher analógica mas emblemática da superficialidade digital. Uma personagem pergunta a ela, exasperada: "Você nunca ouve o que a gente diz?". Não, ela admite, sem hesitar: "Não entendo como as pessoas ficam ouvindo as histórias, umas das outras".
Se tivesse uma conta no Facebook, outra no Twitter e outra no Orkut, Doreen não teria do que se queixar. Todo mundo está contando sua história, mas quem está escutando?
Assim como não se pode mergulhar de cabeça na piscina infantil, é impossível enfrentar com garbo o trivializar-se de tudo, até do luto, ironizado na peça de Elaine May.
A gigante dos cartões Hallmark, a quem devemos a manufatura de efemérides como o Dia das Mães, acaba de lançar sua linha de cartões para desempregados. Como negligenciar um público de mais de 14 milhões de pessoas? Se o seu tio foi despedido depois de 30 anos de dedicação a uma empresa e é tarde demais para ser reeducado para o novo mercado de trabalho, ele há de se sentir muito melhor quando for alcançado pelo correio com o humor do seu cartão, que diz: "Não pense no que aconteceu como a perda do seu emprego. Pense como um tempo livre entre patrões estúpidos". Ou, que tal, "A Vida Não É Justa?".
Ah, e para a sua amiga que sofre de câncer de mama, eu tenho um especial: a Câncer Vixen (A Megera do Câncer). Na capa do cartão, uma figura tipo Barbie dá um pontapé no ar para mostrar como vai vencer a doença. Sugiro não enviar para uma mulher idosa com um tumor em estágio 4.
Uma outra gigante dos cartões, a American Greetings, sabe como é escassa a atenção geral porque está lançando outra linha, com o nome da cantora pop Taylor Swift. Como explica o texto de divulgação do lançamento, é para você agarrar aquela lembrança repentina de alguém importante e mandar um cartão rápido. Antes que um alerta sobre Ashton Kutcher (*) apague o pensamento.
Alguém está prestando atenção em alguma coisa? Ei, você aí mesmo, que não parou de conferir as mensagens do celular enquanto finge conversar comigo. Se o seu mundo tem poucos caracteres, vou facilitar a leitura.
- Uma editora americana nos informa que Courtney Love vai escrever sua "autobiografia definitiva". Aos 47 anos.
- Candidata republicana Michelle Bachmann declara que Barack Obama é "culpado" pelos movimentos populares contra as ditaduras do mundo árabe.
- Candidato republicano e afro-americano Herman Cain diz que, nos Estados Unidos, os negros sofreram lavagem cerebral para não votar no seu partido.
- O céu azul de 11 de setembro de 2011 representa "o último momento da inocência americana". (Tina Brown, animadora chefe da revista Newsweek)
E agora, um boletim urgente: acabam de anunciar que os seios siliconados da ex-coelhinha da Playboy Holly Madison serão objeto de uma apólice de seguro de US$ 1 milhão da Lloyd's de Londres. "Eles estão recebendo o crédito que merecem", disse a estrela da nova obra de dramaturgia O Mundo de Holly, em cartaz num palco de Las Vegas. "Eles são o meu sustento", ela explicou, com sinceridade profunda.
(*) Caro leitor: se você nunca ouviu falar em Ashton Kutcher, primeiro, meus parabéns. Depois, comece uma corrente pela internet, conclamando seus colegas de ignorância a se unirem, uma espécie de movimento inspirado pela antigravidade, e desafie a física newtoniana das celebridades pesos mortos.
(extraído de: O Estado de S. Paulo, São Paulo, 3 out. 2011. Caderno 2, p. D10)
Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.
Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.
Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.
Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.
Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contudo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.
Não afirmo sem prova.
Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!
Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, e daí às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?
(extraído de: ASSIS, J. M. M. Crônicas escolhidas. São Paulo: Ática, 1994. p. 13)
Otto Lara Resende
A rua, a fila, o acaso (1992)
Eu ia dando a minha voltinha num silêncio interior de paz. Está difícil flanar nas ruas de hoje. Muito barulho, carros voando ou atravancando a calçada, anda sobrecarregado o ar que respiramos. Mas há sempre o que ver, se levamos olhos desprevenidos, de simpatia. Me lembrei do tempo em que o pai de família saía depois do jantar pra fazer o quilo. A expressão tem a ver com o mistério da nossa usina interior.
Com o perdão da palavra, tem a ver com as nossas tripas. Hoje é o cooper, que traz um afã de competição. Cronometrado e exibido, tira o fôlego e impede a conversinha mole. É mais uma fábrica de ansiedade nesta época que fabrica estresse. Pois ia eu andando pra clarear as ideias, ou pra pensar em nada. Nessa hora de entrega e de inocência é que acontece a iluminação. A luzinha do entendimento acende onde quer.
Sem nenhum objetivo, eu ia bem satisfeitinho na minha disponibilidade. Aberto a qualquer convite, podia comprar um bombom, ou uma flor. Ou uma dessas canetinhas que acertam comigo e, bem ordinária, me traz um estremecimento de colegial. A gente sabe que o endereço da felicidade é no passado e é mentira. Mas é bom que exista, a felicidade. Nem que seja um momentinho só. Tão rico que dá pra ir vivendo. E se renova com qualquer surpresa boba. Encontrar por exemplo na banca uma revista fútil e dar com a foto daquela moça bonita. Olhar seus olhos e entendê-los, olhos adentro.
A vida é um mundo de possibilidades. Atração e repulsa, afinidades. Convergência e divergência. Nessa altura, as minhas pernas tinham me levado pro mundo da Lua. Quando dei comigo de volta, estava espiando uma fila que coleava pela calçada. Curioso: etimologicamente, aposentado é quem se recolhe aos aposentos. De repente, os aposentados saíram da toca e estão na rua, pacientes em fila ou irados aos magotes.
Mas aquela fila não podia ser de aposentados. Tinha uma moça de short e pernas fortes de atleta. E muitos jovens. E vários boys. Um pequeno interesse, receber um dinheirinho, uma pequena obrigação, pagar uma conta, juntou na fila aquele pessoal todo. Misterioso caminho, esse, que aproxima as pessoas por um instante e depois as separa. Há de ver que ali estavam lado a lado duas almas que se procuram e, distraídas, disso não se deram conta. O acaso, o destino, quanta coisa passa por uma cabeça vadia! Ou por um frívolo coração.
(extraído de: RESENDE, O. L. Bom dia para nascer. Crônicas. Seleção de Matinas Suzuki Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 36)
Luís Fernando Veríssimo
Os pés do Dr. Ebbesmeyer (2008)
Não sei se você leu. A polícia de Vancouver, no Canadá, está investigando um mistério: o aparecimento de três pés humanos em praias de ilhas da região, num curto espaço de tempo. Pés direitos. E os três vestindo tênis. Não foi revelada a marca dos tênis, talvez para não alimentar a hipótese de se tratar do lançamento de alguma campanha publicitária macabra (“Você se decompõe, seu tênis não”, ou “Não caia na água sem eles”).
São muitas as especulações sobre a origem dos pés. Seriam de vítimas de afogamento ou acidentes de barco ou avião. Só os pés teriam sobrado depois que a água e os peixes acabaram com o resto. Ou seriam vítimas de algum matador e desmembrador em série. É possível que já estejam procurando fetichistas conhecidos com serra elétrica em casa. Não sei.
O que mais me intrigou na notícia foi o depoimento de um professor de Oceanografia da Universidade de Washington chamado Curtis Ebbesmeyer, descrito como um especialista em objetos flutuantes. O Dr. Ebbesmeyer não tinha opinião sobre de onde saíram os três pés mas tinha uma explicação para o fato de serem só pés direitos. Pelo formato dos tênis, os de pé direito flutuam naturalmente para um lado, os de pé esquerdo para o outro. Assim, não é improvável que apareçam pés esquerdos correspondentes aos pés já descobertos, mas em praias opostas, apesar de terem a mesma origem. Como autoridade em objetos flutuantes, o Dr. Ebbesmeyer tem a teoria pronta para sustentar sua tese.
Não sei que cara tem o professor, ou que ator o interpretaria quando fizessem o filme, mas posso imaginar as gozações que ele sofria no meio acadêmico por causa da sua especialização e das suas teorias. Aquela sua ideia de que um hipotético par de tênis posto numa superfície de água se separará, e flutuará um para um lado e outro para o outro de acordo com o seu formato, devia valer algumas piadas condescendentes para o velho Curtis, que nunca antes na sua carreira fora consultado sobre sua obsessão, as idiossincrasias dos objetos flutuantes. Até surgir o mistério dos pés direitos para consagrá-lo.
Ou então o próprio Dr. Ebbesmeyer teria, um dia, decidido mostrar aos incrédulos que o atormentavam que sua teoria não era risível, que ele não era o louco que imaginavam.
E providenciara os pés para o seu experimento.
Eu, se fosse a polícia canadense, veria se o Dr. Ebbesmeyer não tem uma serra elétrica.
(extraído de: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2008/03/09/os-pes-do-dr-ebbesmeyer-92956.asp)
Lúcia Guimarães
A profundidade do pires (2011)
A personagem coberta de griffes tinha acabado de ficar viúva, quando reconheceu: "Eu não tenho profundidade para ficar tão triste assim". A plateia dava gargalhadas no Teatro Brooks Atkinson, durante a matinê da temporada de prévias de Relatively Speaking. Os três atos de comédia, escritos por Ethan Coen, Elaine May e Woody Allen, são reunidos numa produção dirigida pelo estimado John Turturro. A estreia é no dia 20 de outubro e, se você, que lembra com saudades da neurose judaico-nova-iorquina de Woody Allen, der com os costados nesta ilha, não deve perder. Mas a viúva perua da peça George Está Morto foi criada por Elaine May, cujo incomparável timing cômico nem sempre viaja bem porque, quem sabe, ela escreve pensando nos tempos em que era parte do duo com Mike Nichols, sim, o diretor. Os dois mudaram a história da improvisação nos Estados Unidos, no final da década de 50.
A viúva Doreen, com seus mais de 60 anos, é uma mulher analógica mas emblemática da superficialidade digital. Uma personagem pergunta a ela, exasperada: "Você nunca ouve o que a gente diz?". Não, ela admite, sem hesitar: "Não entendo como as pessoas ficam ouvindo as histórias, umas das outras".
Se tivesse uma conta no Facebook, outra no Twitter e outra no Orkut, Doreen não teria do que se queixar. Todo mundo está contando sua história, mas quem está escutando?
Assim como não se pode mergulhar de cabeça na piscina infantil, é impossível enfrentar com garbo o trivializar-se de tudo, até do luto, ironizado na peça de Elaine May.
A gigante dos cartões Hallmark, a quem devemos a manufatura de efemérides como o Dia das Mães, acaba de lançar sua linha de cartões para desempregados. Como negligenciar um público de mais de 14 milhões de pessoas? Se o seu tio foi despedido depois de 30 anos de dedicação a uma empresa e é tarde demais para ser reeducado para o novo mercado de trabalho, ele há de se sentir muito melhor quando for alcançado pelo correio com o humor do seu cartão, que diz: "Não pense no que aconteceu como a perda do seu emprego. Pense como um tempo livre entre patrões estúpidos". Ou, que tal, "A Vida Não É Justa?".
Ah, e para a sua amiga que sofre de câncer de mama, eu tenho um especial: a Câncer Vixen (A Megera do Câncer). Na capa do cartão, uma figura tipo Barbie dá um pontapé no ar para mostrar como vai vencer a doença. Sugiro não enviar para uma mulher idosa com um tumor em estágio 4.
Uma outra gigante dos cartões, a American Greetings, sabe como é escassa a atenção geral porque está lançando outra linha, com o nome da cantora pop Taylor Swift. Como explica o texto de divulgação do lançamento, é para você agarrar aquela lembrança repentina de alguém importante e mandar um cartão rápido. Antes que um alerta sobre Ashton Kutcher (*) apague o pensamento.
Alguém está prestando atenção em alguma coisa? Ei, você aí mesmo, que não parou de conferir as mensagens do celular enquanto finge conversar comigo. Se o seu mundo tem poucos caracteres, vou facilitar a leitura.
- Uma editora americana nos informa que Courtney Love vai escrever sua "autobiografia definitiva". Aos 47 anos.
- Candidata republicana Michelle Bachmann declara que Barack Obama é "culpado" pelos movimentos populares contra as ditaduras do mundo árabe.
- Candidato republicano e afro-americano Herman Cain diz que, nos Estados Unidos, os negros sofreram lavagem cerebral para não votar no seu partido.
- O céu azul de 11 de setembro de 2011 representa "o último momento da inocência americana". (Tina Brown, animadora chefe da revista Newsweek)
E agora, um boletim urgente: acabam de anunciar que os seios siliconados da ex-coelhinha da Playboy Holly Madison serão objeto de uma apólice de seguro de US$ 1 milhão da Lloyd's de Londres. "Eles estão recebendo o crédito que merecem", disse a estrela da nova obra de dramaturgia O Mundo de Holly, em cartaz num palco de Las Vegas. "Eles são o meu sustento", ela explicou, com sinceridade profunda.
(*) Caro leitor: se você nunca ouviu falar em Ashton Kutcher, primeiro, meus parabéns. Depois, comece uma corrente pela internet, conclamando seus colegas de ignorância a se unirem, uma espécie de movimento inspirado pela antigravidade, e desafie a física newtoniana das celebridades pesos mortos.
(extraído de: O Estado de S. Paulo, São Paulo, 3 out. 2011. Caderno 2, p. D10)
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