quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

:: LEITURA :: Victor Frankl: o que faz o homem livre

Na qualidade de professor de duas disciplinas, neurologia e psiquiatria, sou plenamente consciente dos limites aos quais o homem está sujeito pelos condicionamentos biológicos, psicológicos e sociológicos. Mas, além de ser professor de duas disciplinas de dois campos diversos, sou também sobrevivente de quatro campos de concentração e como tal sou também testemunha do grau incrível a que pode chegar o homem no desafiar e enfrentar mesmo as piores condições imagináveis. Sigmund Freud disse uma vez: “Experimentemos abandonar certo número de pessoas das mais diversas extrações a uma condição uniforme de fome. Com o crescer do estímulo da fome todas as diferenças individuais serão ofuscadas e em seu lugar aparecerá a expressão uniforme do estímulo insatisfeito”. Nos campos de concentração, contudo, era verdade o contrário. As pessoas acentuavam suas diferenças individuais. Vinha à luz a natureza animal do homem, mas acontecia o mesmo para a santidade. A fome era a mesma, mas as pessoas eram diferentes. Para dizer a verdade, as calorias não contam nada.

O homem não está subjugado pelas condições diante das quais se encontra. Ao contrário, são elas que estão submetidas às suas decisões.

(FRANKL, Victor. Um sentido para a vida. Aparecida: Santuário, 1989. p. 42)


[...] Quem dos que passaram pelo campo de concentração não saberia falar daquelas figuras humanas que caminhavam pela área de formação dos prisioneiros, ou de barracão em barracão, dando aqui uma palavra de carinho, entregando ali a última lasca de pão? E, mesmo que tenham sido poucos, não deixou de constituir prova de que no campo de concentração se pode privar a pessoa de tudo, menos da liberdade última de assumir uma atitude alternativa perante as condições dadas. E havia uma alternativa a cada dia, a cada hora no campo de concentração, havia milhares de oportunidades de concretizar essa decisão interior, uma decisão da pessoa contra ou a favor da sujeição aos poderes do ambiente que ameaçavam privá-la daquilo que é a sua característica mais intrínseca — sua liberdade — e que a induzem, com a renúncia à liberdade e à dignidade, a virar joguete e objeto das condições externas, deixando-se por elas cunhar um prisioneiro “típico” do campo de concentração. [...]

O que se faz necessário aqui é uma viravolta em toda a colocação da pergunta pelo sentido da vida. Precisamos aprender e também ensinar às pessoas em desespero que a rigor nunca e jamais importa o que nós ainda temos a esperar da vida, mas sim exclusivamente o que a vida espera de nós. Falando em termos filosóficos, pode-se dizer que se trata de fazer uma revolução copernicana. Não perguntamos mais pelo sentido da vida, mas nos experimentamos a nós mesmos como os indagados, como aqueles aos quais a vida dirige perguntas diariamente e a cada hora — perguntas que precisamos responder, dando a resposta adequada não por meio de elucubrações ou discursos, mas apenas da ação, da conduta correta. Em última análise, viver não significa outra coisa senão arcar com a responsabilidade de responder adequadamente às perguntas da vida, pelo cumprimento das tarefas colocadas pela vida a cada indivíduo, pelo cumprimento da exigência do momento.

Essa exigência, e com ela o sentido da existência, altera-se de pessoa para pessoa e de um momento para o outro. Jamais, portanto, o sentido da vida humana pode ser definido em termos genéricos, nunca se poderá responder com validade geral à pergunta por esse sentido. A vida como a entendemos aqui não é nada vago, mas sempre algo concreto, de modo que também as exigências que a vida nos faz sempre são bem concretas. Essa concreticidade está dada pelo destino do ser humano, que para cada um sempre é algo único e singular. Nenhum ser humano e nenhum destino pode ser comparado com outro; nenhuma situação se repete. E em cada situação a pessoa é chamada a assumir outra atitude. Em dado momento, a sua situação concreta exige que ela aja, ou seja, que ela procure configurar ativamente o seu destino; em outro momento, que ela aproveite uma oportunidade para realizar valores de vivência (por exemplo, sentindo prazer ou satisfação); outra vez, que ela simplesmente assuma o seu destino. Mas sempre é assim que toda e qualquer situação se caracteriza por esse caráter único e exclusivo que somente permite uma única “resposta” correta à pergunta contida na situação concreta.

Quando um homem descobre que seu destino lhe reservou um sofrimento, tem que ver nesse sofrimento também uma tarefa sua, única e original. Mesmo diante do sofrimento, a pessoa precisa conquistar a consciência de que ela é a única e exclusiva em todo o cosmo dentro desse destino sofrido. Ninguém pode assumir dela o destino, e ninguém pode substituir a pessoa no sofrimento. Mas na maneira como ela própria suporta esse sofrimento está também a possibilidade de uma realização única e singular.

Para nós, no campo de concentração, nada disso era especulação inútil sobre a vida. Essas reflexões eram a única coisa que ainda poderia ajudar-nos, pois esses pensamentos não nos deixavam desesperar quando não enxergávamos chance alguma de escapar com vida. O que nos importava já não era mais a pergunta pelo sentido da vida como ela é tantas vezes colocada ingenuamente, referindo-se a nada mais do que a realização de uma meta qualquer por intermédio de nossa produção criativa. O que nos importava era o objetivo da vida naquela totalidade que inclui também a morte e assim não somente atribui sentido à vida mas também ao sofrimento e à morte. Este era o sentido pelo qual estávamos lutando!

FRANKL, Viktor. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Sinodal/Vozes: Petrópolis, 2004. p. 66, 76.

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