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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014
:: LEITURAS :: Ignácio de Loyola Brandão: Descendo a rua comendo rabanada
Pequenos grandes gestos acontecem nesta cidade. Uma ínfima delicadeza muda o nosso dia. Descia a pé pela rua Artur Azevedo para fazer uma entrevista, eram quase três da tarde, estava adiantado. Passei pela padaria AJ M&M, decidi entrar. Tenho fascínio por padarias. Essa é relativamente nova (nova para São Paulo) no bairro, sempre achei que tinha bom astral. Padarias me acompanham desde a infância, quando, de madrugada, ia com meu pai ao Palamone, em Araraquara, entrávamos numa fila, porque era guerra e tudo estava racionado. Não entendia aquela guerra tão distante. Meu pai tinha na mão o que ele chamava de cupons. Demorei a saber o significado. Era o racionamento. O pão era esquisito, mistura de farinha com fubá, se não me engano.
Eu via gente chegando depois de nós e entrando na frente, meu pai dizia: é o delegado, é o prefeito, o juiz, o sargento, o primo do dono. Por que furavam a fila? Aprendi cedo o que é a mordomia, hoje traduzida em carros oficiais, helicópteros, verbas de representação e etc. Havia uma mulher sorridente que passava por nós, entrava direto na padaria, sem que ninguém reclamasse. Todas as vezes eu ouvia: "É a mulher do padre". Também isso ficou mistério, padre não se casava.
As padarias podiam ser "ambulantes". No meio da tarde, uma carrocinha circulava pelas ruas. Não era uma carroça comum, era uma espécie de grande baú e o carroceiro tocava uma corneta, outros gritavam alto: Paaadeeeirooo!! As mulheres saíam ao portão.
Hora do café das duas, duas e meia. O almoço tinha sido entre 11 e 11 e meia. Aquele baú trazia preciosidades como o pão doce de coco, um primor. Era uma fita enrolada, tendo coco no meio, respingado de açúcar. Havia bengalas quentinhas, pão francês cheirando forno, pão de banha, pão sovado (mais caro), bolachas. Cada padaria tinha seus produtos, concorriam em sabor, qualidade. Minha avó comprava pães e a cada semana, certo dia, fazia rabanadas douradas que desapareciam num minuto da mesa. Quanto à carrocinha, foi o primeiro delivery que conheci na vida.
Pensava nessas coisas, deliciado, enquanto subia os degraus da AJ M&M. Nome curioso. Ao entrar, o cheiro emanado dos balcões abertos me trouxe igualmente o final de noite da juventude. Eu saía do cinema, ia todas as noites, tinha uma "permanente", como se dizia, espécie de passe livre, que me permitia entrar de graça, afinal eu era o crítico. Um dia, o velho Graciano, dono dos cinemas, e pai do Roberto que controlava as duas salas, me perguntou: "Você entra de graça e ainda mete o pau nos filmes?". Roberto entrou na conversa: "Pai, ele é crítico, precisa criticar. Crítico não gosta. Ele tem o direito, gosto do que ele escreve, me divirto. Vejo coisas que não vi no filme. Além do mais, pai, ele vem, assiste, escreve no dia seguinte, a crítica é publicada dois dias depois. O filme já saiu de cartaz. Não faz mal nenhum. Nem coloca nem tira ninguém da sala". Foi das primeiras lições de democracia que assisti e de lucidez quanto ao poder da crítica. Os filmes eram mudados a cada dois dias. Belos tempos.
Saía do cinema, pegava a bicicleta Monark, de freio no pé (pedalando para trás, brecava), que tinha ficado junto à sorveteria do Uesato, e partia para a padaria do Lima, no Carmo, oposto da cidade. Belos tempos, nunca me roubaram a bicicleta.
Chegava no momento em que saía uma fornada de pães, a derradeira. Sentia o cheiro a mais de três quadras. Eu gostava de pão quente antes de dormir, lambuzado de manteiga (Aviação, claro), enquanto ligava o rádio baixinho para ouvir O Sombra. A voz soturna dizia o slogan: "Ninguém sabe o mal que se esconde nos corações alheios, o Sombra sabe". Tremia de pavor no escuro, mas adorava. Comia o pão lentamente.
Quando morei na Alemanha, meu deslumbramento era total com as vitrines das padarias. Certa vez em Hamburgo, acompanhado da escritora portuguesa Lidia Jorge, ficamos meia hora diante de uma vitrine, sem conseguir decidir por um pão de centeio, um frankenbrot, ou um kummelbrot, ou o kiele brot, ou o korn brot. Tudo o que sabíamos é que brot é pão. Desistimos e comemos uma curry wurst em um Imbiss.
Entrei na AJ M&M, percorri as vitrines, encantado, doces tortas, empadões. Dei com uma travessa de rabanadas crocantes, chamativas, olhei deliciado. Um senhor se aproximou:
- Posso ajudar?
- Queria uma rabanada.
- Quantas?
- Uma só.
- Uma?
Ele me olhou, sorriu, me entregou um pratinho com uma, perguntei:
- Quanto é, onde pago?
- Presente meu, coma sua rabanada, tomara goste.
Aquele senhor, dono, ou gerente, seja quem for, não teve ideia, naquele momento do tamanho do seu pequeno gesto, das lembranças que acionou. Mostrou acima de tudo que há momentos de generosidade nesta cidade que todos acusam de violenta, caótica, confusa, difícil, egoísta. Desci a rua comendo lentamente a rabanada dourada, polvilhada de açúcar e de generosidade.
:: LEITURAS :: Roseli Fischmann: Ombudsgirl
Isadora Faber, de 13 anos, aluna de escola pública de Florianópolis, ao criar o Diário de Classe no Facebook trouxe oportunidade de aprofundamento ao debate sobre a qualidade da educação. Usualmente restrito, na mídia, a resultados de Saeb, Prova Brasil, Ideb, indicadores quantitativos que se tornaram familiares a todos, a jovem apontou o papel do desenvolvimento crítico na sua formação como componente dessa qualidade.
Permite, assim, a análise de direitos entrelaçados ao direito à educação. Por exemplo, o direito à liberdade de consciência e o direito à liberdade de expressão. Se para os professores o tema da liberdade de cátedra é incontestável como espaço da liberdade de expressão docente, para os estudantes o tema, embora crucial, não é simples. E o caso de Isadora é exemplar.
O direito à liberdade de consciência implica o direito à formação dessa consciência. Ou seja, é preciso nutrir à consciência, que não se faz sozinha, do nada. Para os que têm oportunidade de estar junto a crianças e jovens, o perigo é a atração pela facilidade de doutrinar, que não guarda nenhuma relação com alimentar consciências, mas com o abandono da ética e das possibilidades democráticas.
A história dos autoritarismos vividos no Brasil, apoiados por processos de doutrinação na escola e na propaganda pública (como o DIP de Getúlio Vargas), marcou a mentalidade da sociedade e deixou uma herança pesada para a escola, que não está lavrada em papel, mas nem por isso é menos atuante.
Se as condições materiais de trabalho nas escolas públicas muitas vezes deixam tanto a desejar, como Isadora deixou às claras, afetando a atuação de cada docente, as marcas do passado também dificultam que seja melhor o trabalho educativo. Observe-se a primeira reação da escola, a de chamar os pais de Isadora para sinalizar os riscos de que a menina continuasse com seu Diário de Classe. Calada e omissa, seria acolhida. Crítica, inconformada e informando o público, era vista como ameaça e, portanto, naquela ótica, merecendo a resposta da retaliação, além de destiná-la, o quanto possível, ao ostracismo no interior da instituição.
Se, por um lado, no Brasil, é crônica a falta de prática de prestar contas do que se faz com o bem público, com transparência, (a mal traduzida accountability), por outro o quadro está mudando. A criação da Comissão da Verdade, ou as transmissões de julgamentos do STF, como o agora em andamento, sinalizam que, à imperiosa necessidade republicana de transparência e correção para os atos públicos, soma-se o direito da sociedade de ser informada de maneira adequada, em tempo real, na sua relação com o Estado. A educação pública é fundada na escola pública, mas vai além, porque é continuada e para toda a vida. Cada um que pode testemunhar a forma como sofrerão consequências os que agiram à margem da lei, desrespeitando o bem público e violaram direitos, recria-se como cidadão em sua cidadania, ao ver a história do País sendo redirecionada pela via da Justiça, do Estado em processo de reflexão e reconstrução. A prática efetiva da Justiça é educativa.
A consciência de Isadora, ao afirmar que a escola pública é paga, sim, pelos que a utilizam, por meio de impostos, sabendo que deve, por isso, cobrar dos governantes, é alvissareira, indicando novos tempos. As redes sociais e, de modo mais amplo, a popularização da internet, trazem novos elementos com os quais a escola ainda não sabe lidar, chegando mesmo a sentir-se frente a dilemas cada vez que surge algo inusitado.
A divulgação de casos dramáticos em que a rede foi usada para fins de violação de direitos de crianças e adolescentes vê-se substituída pela possibilidade do uso construtivo de tão relevante ferramenta. São ainda incipientes as pesquisas a respeito desse importante fenômeno contemporâneo, em especial na forma como atinge crianças e jovens. No caso de Isadora, demonstra um potencial rico, de formação de consciência para muitos e de exercício de liberdade de expressão que não poderia transformar-se, por seu mérito, em ocasião de represália violadora de seus direitos.
A prática de levar a público sua opinião e expor-se, enquanto expõe a realidade escolar em que vive, significa não apenas o exercício e a busca de solução, mas ao mesmo tempo, pela dimensão da publicidade, um paradoxal risco seguro. Porque quantos mais tomaram conhecimento de seu Diário, mais protegida Isadora ficou de que lhe infligissem qualquer arbitrariedade. Habilmente a Secretaria de Educação entrou em campo, amparando a escola e sua diretora, procurando mediar o alegado "dano à imagem" da escola, que nada mais era que a expressão efetiva do que ali se passava. A comparação a um tipo de "ouvidoria", proposta pela secretaria, indica abordagem mais adequada que protege a escola, mas não garante o cotidiano da menina, cujos méritos são tão notáveis quanto o apoio que seus pais lhe deram, mas que pede ainda proteção. Para demonstrar que efetivamente encara Isadora como ouvidora, já que ouvidores ou "ombudsmen" sempre têm garantias em relação ao que fazem e a sua segurança pessoal, a secretaria precisa apoiá-la e valorizá-la. Isadora - felizmente - tem a palavra. Ficamos à espera.
(FISCHMANN, Roseli. Ombudsgirl. O Estado de S. Paulo, 2 set. 2012)
(FISCHMANN, Roseli. Ombudsgirl. O Estado de S. Paulo, 2 set. 2012)
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014
:: LEITURAS :: Rubem Alves: A festa de Babette
Um dos meus prazeres é passear pela feira. Vou para comprar. Olhos compradores são olhos caçadores: vão em busca de caça, coisas específicas para o almoço e a janta. Procuram. O que deve ser comprado está na listinha. Olhos caçadores não param sobre o que não está escrito nela. Mas não vou só para comprar. Alterno o olhar caçador com o olhar vagabundo. O olhar vagabundo não procura nada. Ele vai passeando sobre as coisas. O olhar vagabundo tem prazer nas coisas que não vão ser compradas e não vão ser comidas. O olhar caçador está a serviço da boca. Olham para a boca comer. Mas o olhar vagabundo, é ele que come. A gente fala: comer com os olhos. é verdade. Os olhos vagabundos são aqueles que comem o que veem. E sentem prazer. A Adélia diz que Deus a castiga de vez em quando, tirando-lhe a poesia. Ela explica dizendo que fica sem poesia quando seus olhos, olhando para uma pedra, veem uma pedra. Na feira é possível ir com olhos poéticos e com olhos não poéticos. Os olhos não poéticos vêem as coisas que serão comidas. Olham para as cebolas e pensam em molhos. Os olhos poéticos olham para as cebolas e pensam em outras coisas. Como o caso daquela paciente minha que, numa tarde igual a todas as outras, ao cortar uma cebola viu na cebola cortada coisas que nunca tinha visto. A cebola cortada lhe apareceu, repentinamente, como o vitral redondo de catedral. Pediu o meu auxílio. Pensou que estava ficando louca. Eu a tranquilizei dizendo que o que ela pensava ser loucura nada mais era que um surto de poesia. Para confirmar o meu diagnóstico lembrei-lhe o poema de Pablo Neruda "A Cebola", em que ele fala dela como "rosa d'água com escamas de cristal". Depois de ler o poema do Neruda uma cebola nunca será a mesma coisa. Ando assim pela feira poetizando, vendo nas coisas que estão expostas nas bancas realidades assombrosas, incompreensíveis, maravilhosas. Pessoas há que, para terem experiências místicas, fazem longas peregrinações para lugares onde, segundo relatos de outros, algum anjo ou ser do outro mundo apareceu. Quando quero ter experiências místicas eu vou à feira. Cebolas, tomates, pimentões, uvas, caquis e bananas me assombram mais que anjos azuis e espíritos luminosos. Entidades encantadas. Seres de um outro mundo. Interrompem a mesmice do meu cotidiano.
Pimentões, brilhantes, lisos, vermelhos, amarelos e verdes. Ainda hei de decorar uma árvore de Natal com pimentões. Nabos brancos, redondos, outros obscenamente compridos. Lembro-me de uma crônica da querida e inspirada Hilda Hilst que escandalizou os delicados: ela ia pela feira poetizando eroticamente sobre nabos e pepinos. Escandalizou porque ela disse o que todo mundo pensa mas não tem coragem de dizer. Roxas berinjelas, cenouras amarelas, tomates redondos e vermelhos, morangas gomosas, salsinhas repicadas a tesourinha, cebolinhas, canudos ocos, bananas compridas e amarelas, caquis redondos e carnudos (sobre eles o Heládio Brito escreveu um poema tão gostoso quanto eles mesmos), mamões, úteros grávidos por dentro, laranjas alaranjadas (um gomo de laranja é um assombro, o suco guardado em milhares de garrafinhas transparentes), cocos duros e sisudos, pêssegos, perfume de jasmim do imperador, cachos de uvas, delicadas obras de arte, morangos vermelhos, frutinhas que se comem à beira do abismo... Minha caminhada me leva dos vegetais às carnes: linguiças, costelas defumadas, carne de sol, galinhas, codornizes, bacalhau, peixes de todos os tipos, camarões, lagostas. Os vegetarianos estremecem. Compreendo, porque na alma eu também sou vegetariano. Fosse eu rei decretaria que no meu reino nenhum bicho seria morto para nosso prazer gastronômico. Mas rei não sou. Os bichos já foram mortos contra a minha vontade. Nada posso fazer para trazê-los de volta à vida. Assim, dou-lhes minha maior prova de amor: transformo-os em deleite culinário para que continuem a viver no meu corpo. De alguma maneira vivem em mim todas as coisas que comi. Sobre isso sabia muito bem o genial pintor Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), que pintava os rostos das pessoas com os legumes, frutas e animais que se encontram nas bancas da feira. (Dê-se o prazer de ver as telas de Arcimboldo. Nas livrarias, coleção Taschen, mais ou menos quinze reais).
Meus pensamentos começam a teologar. Penso que Deus deve ter sido um artista brincalhão para inventar coisas tão incríveis para se comer. Penso mais: que ele foi gracioso. Deu-nos as coisas incompletas, cruas. Deixou-nos o prazer de inventar a culinária.
Comer é uma felicidade, se se tem fome. Todo mundo sabe disto. Até os ignorantes nenezinhos. Mas poucos são os que se dão conta de que felicidade maior que comer é cozinhar. Faz uns anos comecei a convidar alguns amigos para cozinharmos juntos, uma vez por semana. Eles chegavam lá pelas seis horas (acontecia na casa antiga onde hoje está o restaurante Dali). Cada noite um era o mestre cuca, escolhia o prato e dava as ordens. Os outros obedeciam alegremente. E aí começávamos a fazer as coisas comuns preliminares a cozinhar e comer: lavar, descascar, cortar — enquanto íamos ouvindo música, conversando, rindo, beliscando e bebericando. A comida ficava pronta lá pelas 11 da noite.
Ninguém tinha pressa. Não é por acaso que a palavra comer tenha sentido duplo. O prazer de comer, mesmo, não é muito demorado. Pode até ser muito rápido, como no McDonald's. O que é demorado são os prazeres preliminares, arrastados — quanto mais demora maior é a fome, maior a alegria no gozo final. Bom seria se cozinha e sala de comer fossem integradas — os arquitetos que cuidem disso — para que os que vão comer pudessem participar também dos prazeres do cozinhar. Sábios são os japoneses que descobriram um jeito de pôr a cozinha em cima da mesa onde se come, de modo que cozinhar e comer ficam sendo uma mesma coisa. Pois é precisamente isto que é o sukiyaki, que fica mais gostoso se se usa kimono de samurai.
Quem pensa que a comida só faz matar a fome está redondamente enganado. Comer é muito perigoso. Porque quem cozinha é parente próximo das bruxas e dos magos. Cozinhar é feitiçaria, alquimia. E comer é ser enfeitiçado. Sabia disso Babette, artista que conhecia os segredos de produzir alegria pela comida. Ela sabia que, depois de comer, as pessoas não permanecem as mesmas. Coisas mágicas acontecem. E desconfiavam disso os endurecidos moradores daquela aldeola, que tinham medo de comer do banquete que Babette lhes preparara. Achavam que ela era uma bruxa e que o banquete era um ritual de feitiçaria. No que eles estavam certos. Que era feitiçaria, era mesmo. Só que não do tipo que eles imaginavam. Achavam que Babette iria por suas almas a perder. Não iriam para o céu. De fato, a feitiçaria aconteceu: sopa de tartaruga, cailles au sarcophage, vinhos maravilhosos, o prazer amaciando os sentimentos e pensamentos, as durezas e rugas do corpo sendo alisadas pelo paladar, as máscaras caindo, os rostos endurecidos ficando bonitos pelo riso, in vino veritas... Está tudo no filme A Festa de Babette. Terminado o banquete, já na rua, eles se dão as mãos numa grande roda e cantam como crianças... Perceberam, de repente, que o céu não se encontra depois que se morre. Ele acontece em raros momentos de magia e encantamento, quando a máscara-armadura que cobre o nosso rosto cai e nos tornamos crianças de novo. Bom seria se a magia da Festa de Babette pudesse ser repetida...
(ALVES, Rubem. A festa de Babette. Correio Popular, Campinas, [20--]).
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014
:: LEITURA :: Victor Frankl: o que faz o homem livre
Na qualidade de professor de duas disciplinas, neurologia e psiquiatria, sou plenamente consciente dos limites aos quais o homem está sujeito pelos condicionamentos biológicos, psicológicos e sociológicos. Mas, além de ser professor de duas disciplinas de dois campos diversos, sou também sobrevivente de quatro campos de concentração e como tal sou também testemunha do grau incrível a que pode chegar o homem no desafiar e enfrentar mesmo as piores condições imagináveis. Sigmund Freud disse uma vez: “Experimentemos abandonar certo número de pessoas das mais diversas extrações a uma condição uniforme de fome. Com o crescer do estímulo da fome todas as diferenças individuais serão ofuscadas e em seu lugar aparecerá a expressão uniforme do estímulo insatisfeito”. Nos campos de concentração, contudo, era verdade o contrário. As pessoas acentuavam suas diferenças individuais. Vinha à luz a natureza animal do homem, mas acontecia o mesmo para a santidade. A fome era a mesma, mas as pessoas eram diferentes. Para dizer a verdade, as calorias não contam nada.
O homem não está subjugado pelas condições diante das quais se encontra. Ao contrário, são elas que estão submetidas às suas decisões.
(FRANKL, Victor. Um sentido para a vida. Aparecida: Santuário, 1989. p. 42)
[...] Quem dos que passaram pelo campo de concentração não saberia falar daquelas figuras humanas que caminhavam pela área de formação dos prisioneiros, ou de barracão em barracão, dando aqui uma palavra de carinho, entregando ali a última lasca de pão? E, mesmo que tenham sido poucos, não deixou de constituir prova de que no campo de concentração se pode privar a pessoa de tudo, menos da liberdade última de assumir uma atitude alternativa perante as condições dadas. E havia uma alternativa a cada dia, a cada hora no campo de concentração, havia milhares de oportunidades de concretizar essa decisão interior, uma decisão da pessoa contra ou a favor da sujeição aos poderes do ambiente que ameaçavam privá-la daquilo que é a sua característica mais intrínseca — sua liberdade — e que a induzem, com a renúncia à liberdade e à dignidade, a virar joguete e objeto das condições externas, deixando-se por elas cunhar um prisioneiro “típico” do campo de concentração. [...]
O que se faz necessário aqui é uma viravolta em toda a colocação da pergunta pelo sentido da vida. Precisamos aprender e também ensinar às pessoas em desespero que a rigor nunca e jamais importa o que nós ainda temos a esperar da vida, mas sim exclusivamente o que a vida espera de nós. Falando em termos filosóficos, pode-se dizer que se trata de fazer uma revolução copernicana. Não perguntamos mais pelo sentido da vida, mas nos experimentamos a nós mesmos como os indagados, como aqueles aos quais a vida dirige perguntas diariamente e a cada hora — perguntas que precisamos responder, dando a resposta adequada não por meio de elucubrações ou discursos, mas apenas da ação, da conduta correta. Em última análise, viver não significa outra coisa senão arcar com a responsabilidade de responder adequadamente às perguntas da vida, pelo cumprimento das tarefas colocadas pela vida a cada indivíduo, pelo cumprimento da exigência do momento.
Essa exigência, e com ela o sentido da existência, altera-se de pessoa para pessoa e de um momento para o outro. Jamais, portanto, o sentido da vida humana pode ser definido em termos genéricos, nunca se poderá responder com validade geral à pergunta por esse sentido. A vida como a entendemos aqui não é nada vago, mas sempre algo concreto, de modo que também as exigências que a vida nos faz sempre são bem concretas. Essa concreticidade está dada pelo destino do ser humano, que para cada um sempre é algo único e singular. Nenhum ser humano e nenhum destino pode ser comparado com outro; nenhuma situação se repete. E em cada situação a pessoa é chamada a assumir outra atitude. Em dado momento, a sua situação concreta exige que ela aja, ou seja, que ela procure configurar ativamente o seu destino; em outro momento, que ela aproveite uma oportunidade para realizar valores de vivência (por exemplo, sentindo prazer ou satisfação); outra vez, que ela simplesmente assuma o seu destino. Mas sempre é assim que toda e qualquer situação se caracteriza por esse caráter único e exclusivo que somente permite uma única “resposta” correta à pergunta contida na situação concreta.
Quando um homem descobre que seu destino lhe reservou um sofrimento, tem que ver nesse sofrimento também uma tarefa sua, única e original. Mesmo diante do sofrimento, a pessoa precisa conquistar a consciência de que ela é a única e exclusiva em todo o cosmo dentro desse destino sofrido. Ninguém pode assumir dela o destino, e ninguém pode substituir a pessoa no sofrimento. Mas na maneira como ela própria suporta esse sofrimento está também a possibilidade de uma realização única e singular.
Para nós, no campo de concentração, nada disso era especulação inútil sobre a vida. Essas reflexões eram a única coisa que ainda poderia ajudar-nos, pois esses pensamentos não nos deixavam desesperar quando não enxergávamos chance alguma de escapar com vida. O que nos importava já não era mais a pergunta pelo sentido da vida como ela é tantas vezes colocada ingenuamente, referindo-se a nada mais do que a realização de uma meta qualquer por intermédio de nossa produção criativa. O que nos importava era o objetivo da vida naquela totalidade que inclui também a morte e assim não somente atribui sentido à vida mas também ao sofrimento e à morte. Este era o sentido pelo qual estávamos lutando!
FRANKL, Viktor. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Sinodal/Vozes: Petrópolis, 2004. p. 66, 76.
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