Ao divino assassino (fragmento)
é sempre assim? Não tens um refratário
à hora do massacre — um mais sensível
que atrasasse o relógio, o calendário?
Ao que parece a todos tanto faz
por quem o sino dói no campanário. [...]
Noturno
Não sou o que te quer. Sou o que desce
a ti, veia por veia, e se derrama
à cata de si mesmo e do que é chama
e em cinza se reúne e se arrefece.
Anoitece contigo. E me anoitece
o lume do que é findo e me reclama.
Abro as mãos no obscuro. Toco a trama
que lacuna a lacuna amor se tece.
Repousa em ti o espanto que em mim dói,
noturno. E te revolvo. E estás pousada,
pomba de pura sombra que me rói.
E mordo teu silêncio corrosivo,
chupo o que flui, amor, sei que estou vivo
e sou teu salto em mim, suspenso em nada.
ADÉLIA PRADO
Explicação de poesia sem ninguém pedir
Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.
Dona doida
Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso,
com trovoada e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.
Grande desejo
Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai,
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz pra cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
para chorar, chorar e chorar,
requintada e esquisita como uma dama.
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