PRIMEIRA CENA
Região de Chevoche. Vigília de Natal. Camponeses, homens, mulheres e crianças trabalham na floresta. Fogo ao centro com marmitas em cima.
De cada lado da cena, dois gigantes de lenha, vestidos de camisola branca com uma cruz vermelha no peito; têm o rosto groseiramente pintado no barril que lhes serve de cabeça, e cujas bordas, recortadas em dentes, fazem lembrar uma coroa; em vez da torneira, longa trombeta sustida por um braço de pau.
Cai o dia. Neve no chão e céu de neve.
O PREFEITO DE CHEVOCHE — Pronto. O Rei pode vir.
UM OPERÁRIO — Por nós já pode vir. Já fizemos a nossa parte.
O PREFEITO DE CHEVOCHE, olhando com satisfação — Está muito bonito. Também todo mundo trabalhou, homens, mulheres e crianças.
E ainda por cima com todo esse mau tempo, espinhos e poças.
Garanto que os espertalhões de Bruyères não nos derrubarão desta vez!
UM OPERÁRIO — O caminho deles é que está de derrubar, com todos os tocos que deixaram!
Riem.
O APRENDIZ, em voz terrivelmente esganiçada:
Vox clamantis in deserto: Parate vias Domini et erunt prava in directa et aspera in vias planas.
— É verdade que trabalhastes bem. Eu vos felicito, minha gente! Até parece caminho para procissão de Corpus Christi. (apontando os gigantes) E quem são, meus senhores, essas belas e reverendas pessoas?
UM OPERÁRIO — Não são bonitos? Foi o Pai Vicente, o velho beberrão, que os fez.
Diz ele que é o grande rei da Abissínia com sua ilustre esposa (envia-lhe um beijo).
O APRENDIZ — Pois eu pensei que f6ssem Gog e Magog.
O PREFEITO DE CHEVOCHE — São os dois Anjos de Chevoche que vieram saudar o Rei, seu senhor.
Botaremos fogo quando passar por aqui.
— Escutai!
Todos ficam ouvindo.
UM OPERÁRIO — Oh! Não é ele ainda. A gente teria ouvido os sinos de Bruyères.
UM OUTRO — Não estará aqui, garanto, antes de meia-noite.
Ele jantou em Fisme.
UM OUTRO — Daqui se vê bem. Não arredarei um passo.
UM OUTRO — Tens o que comer, Pedrinho?
Só pude trazer um pedaço de pão.
Está gelado.
O PREFEITO — Não te preocupes. Há um quarto de porco na marmita;
Sem contar os chouriços e os cabritos que mataram!
Temos ainda maças, três varas de linguiça e um bom barril de vinho.
O APRENDIZ — Ficarei convosco.
UMA MULHER — É o que se chama um bom Natal.
O APRENDIZ — Foi no dia de Natal que o Rei Clovis batizou-se em Rheims.
OUTRA MULHER — E é no dia de Natal que o Rei Carlos vai em Rheims sagrar-se.
UMA OUTRA — E é uma simples moça que o vai levar até lá,
Enviada por Deus!
UMA OUTRA — Joana, aquela
UMA OUTRA — A quem chamam Donzela.
UMA OUTRA — E que nasceu na noite da Epifania!
UMA OUTRA — E que tocou os ingleses de Orleans, por eles sitiada.
UM OUTRO — E que os vai botar a todos fora da França também.
UM OUTRO — Fora da França. Amém!
UM OUTRO, cantarolando — Natal, Natal!
Como faz frio!
Embrulha-se na capa.
UMA MULHER — É preciso reparar bem se não há um homenzinho de vermelho perto do Rei. É ela.
UMA OUTRA — Num grande cavalo negro.
A PRIMEIRA — Há menos de seis meses guardava ainda as vacas do pai.
UMA OUTRA — E agora empunha uma bandeira com o nome de Jesus escrito.
UM OPERÁRIO — E da qual os ingleses fogem como rato.
UM OUTRO — Que os maus borgonheses se acautelem!
UM OUTRO — Estarão todos em Rheims de madrugada.
UM OUTRO — Como serão as coisas por lá?
O APRENDIZ — Os dois sinos da Catedral, Baudon e Baude,
Começarão a tocar o Glória da Missa do Galo, e não pararão de badalar até a chegada dos franceses.
Todo mundo terá em casa uma vela acesa,
Pois espera-se que o Rei esteja lá para a Missa da Aurora, que é justamente Lux fulgebit.
Todo o clero irá ao seu encontro em capas de ouro, trezentos padres e o Arcebispo; sem falar nos frades, o Prefeito e a comuna.
Deve ser belo na neve, sob o sol claro e alegre, enquanto o povo canta “Natal”!
E dizem que o Rei quer descer do cavalo à porta da cidade, e entrar, à semelhança de Nosso Senhor, montado num jumento.
O PREFEITO — Como é então que não ficaste por lá?
O APRENDIZ — Foi que Mestre Pedro de Craon mandou-me em busca de areia.
O PREFEITO — O quê? Ocupa-se disso num momento desses?
O APRENDIZ — Ele diz que o tempo é breve.
O PREFEITO — Mas como ocupá-lo melhor que na construção da estrada que fazemos?
O APRENDIZ — Ele diz que sua profissão não é fazer caminhos para o Rei, mas uma casa para Deus.
O PREFEITO — Para que serve Rheims, se lá não pode ir o Rei?
O APRENDIZ — Para que serve a estrada, se não houver na ponta uma igreja?
O PREFEITO — Não é um bom francês...
O APRENDIZ — Ele diz que só quer saber do seu ofício e que quem falar de política entre nós terá o nariz besuntado com carvão da panela.
O PREFEITO — Ele não pôde sequer levar a cabo a Justiça e há dez anos que trabalham...
O APRENDIZ — Como não? Toda pedra está pronta, toda a madeira armada, e só falta a flecha, só ela, que não cessa de subir!
O PREFEITO — Dizem que o homem está leproso.
O APRENDIZ — É mentira! Eu o vi no verão todo nu, tomando banho no rio!
Posso garantir que tem a carne de uma criança!
O PREFEITO — Engraçado o que dizes...
Por que se encondeu tanto tempo?
O APRENDIZ — É mentira!
O PREFEITO — Eu bem sei que não, pois sou mais velho que tu. Não é preciso zangar-se, meu caro. Não faz mal que esteja doente do corpo:
Não é com o corpo que trabalha!
O APRENDIZ — Ah! se ele ouvisse dizer isso!
Lembro bem como puniu um de nós que ficava todo tempo desenhando num canto.
Meteu-o toda a manhã sob os andaimes com os pedreiros para lhes passar os baldes e as pedras.
Dizendo que no fim do dia saberia duas coisas melhor que pelo estudo e as regras: o peso que um homem pode suportar e a altura do seu corpo.
E assim como a graça de Deus multiplica cada uma de nossas boas ações,
Assim nos ensinou ele o que chamou “o Ciclo do Tempo”. E como dessa casa de Deus cada homem faz o que pode com seu corpo por fundamento secreto.
E o que são a polegada, o palmo e o côvado, o braço estendido e o círculo que ele faz,
E o pé e o passo;
E nenhum, nenhum deles é jamais igual!
Crês acaso que o corpo foi indiferente ao pai Noé quando nos fez a arca?
Será indiferente o número de passos que vai da porta ao altar, e a altura a que é permitido o olhar erguer-se, e a quantidade de almas que de cada lado pode a Igreja conter?
Porque o artista pagão fazia tudo de fora para dentro, e nós, tudo de dentro para fora como as boas abelhas.
E como a alma em relação ao corpo: nada é inerte, tudo vive,
É tudo ação de graças.
O PREFEITO — O rapaz fala bem.
UM OPERÁRIO — É um papagaio que repete as palavras do dono...
O APRENDIZ — Dobra a língua ao falar de Pedro de Craon!
O PREFEITO — É verdade que ele é burguês de Rheims e que o chamam o Mestre do Compasso,
Como outrora chamavam ao Rei Luís
O Mestre da Regra.
UM OUTRO — Joga lenha no fogo, Pedrinho. Eis que começa a nevar.
Realmente. — A noite veio de todo. —
Entra Mara, de preto, trazendo uma espécie de embrulho sob o manto.
MARA — É aqui a gente de Chevoche?
O PREFEITO — Sim. Somos nós.
MARA — Louvado seja Jesus Cristo!
O PREFEITO — Para sempre seja louvado!
MARA — Onde fica a cabana da leprosa?
O PREFEITO — Da leprosa?
MARA — Sim.
O PREFEITO — Não é bem na nossa zona.
Mas no limite.
UM OUTRO — Desejas ver a leprosa?
MARA — Desejo.
UM HOMEM — A gente não a pode ver
Tem sempre um véu sobre a face como foi prescrito.
UM OUTRO — E bem prescrito. Não sou eu quem a quisera olhar.
MARA — Há muito tempo que a tendes aí?
O HOMEM — Oito anos já. E bem quiséramos ficar livres dela!
MARA — Será que fez mal a alguma pessoa?
O HOMEM — Não. Mas mesmo assim é incômodo ter ao lado essa podridão de criatura.
O PREFEITO — Além do mais é a comuna que lhe dá comida.
MARA — Vive sozinha na floresta, como um bicho?
O HOMEM A — Ora, és engraçada! Quem não teria medo da doença?
O HOMEM B — Só o padre é que lhe vai dizer missa de vez em quando.
O HOMEM C — Mas não há perigo que ele entre na cabana, era o que faltava...
Fizeram-lhe fora uma espécie de...
Como é mesmo?... uma espécie de púlpito.
O APRENDIZ — Um estrado?
O HOMEM C — É isso: um estrado. Ela o utiliza para dizer missa aos bichos.
MARA — Que vem a ser isto?
UMA MULHER — É a pura e simples verdade. Prega aos cabritos e aos coelhos ao clarão da lua.
Alguém o viu um dia, ao voltar de uma festa.
UMA OUTRA — E dizem que todos os coelhos estavam sentadinhos em roda para escutá-la.
UMA OUTRA — A raposa servia de acólito e o urso branco de sacristão.
O HOMEM B — É bem agradável ter disso na comuna!
O PREFEITO — E além de tudo a comuna é que a tem de alimentar!
O HOMEM, gritando — Ora! Há três dias que lhe esquecemos de levar comida com essa história de estrada!
UMA MULHER — E que desejas dessa mulher?
Mara não responde, e fica de pé, olhando o fogo.
UMA MULHER — Parece que é uma criança o que tens no braço?
UMA OUTRA — Faz muito frio para passear com criança...
MARA — Não sente frio nenhum.
Silêncio. Ouve-se na noite, sob as árvores, o ruído de uma campainha de madeira.
UMA VELHA — Olha! Ei-la aí justamente.
Santa Virgem!
É pena que não tenha morrido!
UMA MULHER — Vem procurar comida.
Não há perigo de esquecer.
UM HOMEM — Que desgraça ter de alimentar essa podridão!
UM OUTRO — Jogai-lhe qualquer coisa. É preciso que não se aproxime de nós.
Bastava dar-lhe veneno...
UM OUTRO — Não lhe dês carne, Pedrinho.
É abstinência, Vigília do Natal!
Riem.
Joga-lhe o teu pedaço de pão gelado.
Está ótimo para ela.
O HOMEM, gritando — Ó sem cara! Ó Joana não-sei-de-quê!
Ó devorada!
Vê-se sobre a neve a forma negra da leprosa. Mara a contempla.
Pega!
Ele joga-lhe com toda força um pedaço de pão.
Ela abaixa, apanha, e depois se afasta.
Mara põe-se a segui-la.
UM HOMEM — Onde irá ela?
UM OUTRO — Ó mulher, onde vais? Que vais fazer?
Elas se afastam.
O pano baixa um momento. Violaine, velada e sacudindo a compainha, passa por diante da cena, seguida de Mara.
SEGUNDA CENA
O cenário é o mesmo dos outros atos, suprimindo a escada.
Na abertura do alto se pôs um sino, e na de baixo uma espécie de estátua mutilada.
Na frente uma espécie de estrado bem largo, ao qual se sobe por dois ou três degraus dominados por uma grande cruz, à qual se encosta uma cadeira.
Mais à frente uma estante de coro, e uma lâmpada pendurada numa estaca.
VIOLAINE — Quem está aqui,
E não teme associar seu passo ao passo da Leprosa?
Sabei que o seu hábito é mortífero, sua vizinhança perigosa.
MARA — Sou eu, Violaine.
VIOLAINE — Ó voz há tanto tempo não mais ouvida! És tu, minha mãe?
MARA — Sou eu, Violaine.
VIOLAINE — É a tua voz e outra.
Deixa-me acender o fogo, que está frio.
E a lâmpada também.
Acende um fogo de gravetos com brasas conservadas num pote, e em seguida a lâmpada.
MARA — Sou eu, Violaine, Mara, tua irmã.
VIOLAINE — Ah, querida irmã! Como é bom teres vindo! Não tens medo de mim?
MARA — Não tenho medo de nada no mundo.
VIOLAINE — Como tua voz ficou igual à de Mamãe!
MARA — Violaine, nossa mãe já morreu.
Silêncio.
VIOLAINE — O pano que ela tecera com suas mãos para lhe servir de mortalha...
MARA — Não te aflijas, ela o levou consigo.
VIOLAINE — Pobre Mamãe! Que Deus tenha a sua alma!
MARA — O pai não voltou ainda...
VIOLAINE — E vós dois?
MARA — Vamos bem.
VIOLAINE — Eu sei que não podia ser de outro modo,
Contigo e Jacques.
MARA — Tu verás o que fizemos! Temos três charruas a mais. Não reconhecerás Combernon!
E vamos derrubar os velhos muros,
Agora que o Rei voltou.
VIOLAINE — E sois felizes juntos, Mara?
MARA — Sim, somos felizes. Ele me ama,
E eu o amo.
VIOLAINE — Louvado seja Deus.
MARA — Violaine!
Tu não vês o que trago nos braços?
VIOLAINE — Não, eu não vejo.
MARA — Levanta então esse véu.
VIOLAINE — Tenho, debaixo dele, um outro...
MARA — Não vês mais?
VIOLAINE — Não tenho mais olhos.
Só a alma permanece no corpo desfeito.
MARA — Cega!
Como caminhas, então, tão direito?
VIOLAINE — Eu escuto.
MARA — Que escutas tu?
VIOLAINE — As coisas existirem comigo.
MARA, profundamente — E a mim, Violaine, tu me escutas?
VIOLAINE — Deus, que está com todos ao mesmo tempo,
Me deu de todos o entendimento.
MARA — Tu me escutas, Violaine?
VIOLAINE — Ah! pobre Mara!
MARA — Tu me escutas, Violaine?
VIOLAINE — Que queres de mim, querida?
MARA — Louvar contigo esse Deus que te fez corrompida.
VIOLAINE — Louvemo-lo, pois, nessa vigília do seu Natal.
MARA — É fácil ser santa quando a lepra nos vai comendo.
VIOLAINE — Não o sei, não o sendo.
MARA — A gente tem mesmo de se voltar para Deus quando o resto desaparece.
VIOLAINE — Ele ao menos não me faltará!
MARA, baixinho — Violaine, quem poderá garantir?
VIOLAINE — A vida falta, mas não a morte em que vivo.
MARA — Herege! Estás certa da salvação?
VIOLAINE — Estou da Sua bondade.
MARA — Vemos bem as amostras...
VIOLAINE — Tenho fé em Deus que me deu meu quinhão.
MARA — Que sabes tu daquele que é invisível e que em nada se manifesta?
VIOLAINE — Não é, para mim, mais invisível que o resto...
MARA, ironicamente — Está contigo, minha pombinha, e ama-te muito?
VIOLAINE — Como a todos os miseráveis!
MARA — O seu amor é grande!
VIOLAINE — Como o do fogo pela madeira que inflama.
MARA — Ele te castigou duramente.
VIOLAINE — Não tanto quanto eu havia merecido.
MARA — E já aquele a quem deste o teu corpo esqueceu-te.
VIOLAINE — Não dei meu corpo a ninguém!
MARA — Doce Violaine, mentirosa Violaine, não te vi eu ternamente beijar a Pedro de Craon naquela bela manhã de junho?
VIOLAINE — Tu viste tudo, e nada mais havia.
MARA — Por que então o beijavas com tanta convicção?
VIOLAINE — Porque o probre homem estava leproso, e eu era feliz demais aquele dia!
MARA — Pura inocência, não?
VIOLAINE — Tal a menina que beijasse um menino.
MARA — Posso acreditar. Violaine, posso?
VIOLAINE — É a verdade.
MARA — Não vás dizer que foi por tua vontade que me deixaste o Jacques!
VIOLAINE — Não, não foi por minha vontade. Eu o amava! E não sou tão boa assim!
MARA — Seria possível que ele te amasse ainda, estando tu leprosa?
VIOLAINE — Não esperava isto.
MARA — Quem poderá amar uma leprosa?
VIOLAINE — Meu coração é limpo!
MARA — Mas como Jacques poderia sabê-lo?
Ele te julga criminosa.
VIOLAINE — Mamãe me dissera que gostavas dele.
MARA — Não vás dizer que foi ela que te tornou leprosa.
VIOLAINE — A graça de Deus veio na frente.
MARA — De modo que quando ela falou-te...
VIOLAINE — Era a Ele próprio que eu ouvia.
MARA — Mas por que deixares julgarem-te perjura?
VIOLAINE — Não haveria eu então de fazer alguma coisa do meu lado? Pobre Jacques!
Deveria eu deixá-lo cheio de pena?
MARA — Confessa que não o amavas.
VIOLAINE — Ó Mara! Ó Mara!
MARA — Pois eu, eu nunca o deixaria desse modo!
VIOLAINE — Fui eu acaso que o deixei?
MARA — Mas eu, eu teria morrido!
VIOLAINE — E eu, será que estou viva?
MARA — Agora, sou feliz com ele.
VIOLAINE — Paz sobre os dois.
MARA — E ele me deu um filho, Violaine, uma filhinha, uma doce filhinha!
VIOLAINE — Paz sobre os três.
MARA — Nossa alegria é grande. Mas a tua, com Deus, é maior.
VIOLAINE — Eu também conheci a alegria há oito anos e o meu coração foi por ela tão arrebatado,
Que pedi loucamente a Deus: que dure sempre e nunca mais acabe!
E Deus me escutou estranhamente!
Minha lepra poderá acaso sarar?
Não, enquanto houver uma parcela, um pouco de carne a consumir.
Há de sarar o amor no meu peito? Não, enquanto houver alma imortal para, pouco a pouco, o nutrir.
Mara, será que o teu marido te conhece?
MARA — Que homem conheceu jamais mulher alguma?
VIOLAINE — Feliz a que pode ser conhecida a fundo e se dar toda.
Jacques, que teria ele feito de tudo que eu lhe desse?
MARA — Transferiste a Outro a tua fé?
VIOLAINE — O amor gerou o sofrimento, e o sofrimento, o amor.
A madeira a que se pôs fogo não dá somente a cinza, mas a chama também.
MARA — De que serve esse fogo cego que não dá aos outros
Luz ou calor?
VIOLAINE — Não é bastante que ele me sirva?
Não censures essa luz à criatura calcinada.
Luz que a visita até os fundamentos e a faz ver-se em si mesma!
Se passasses em minha pele uma só noite, tu não dirias que esse fogo não queima...
Só o homem é sacerdote, mas mulher pode também ser sacrifício e holocausto.
Deus é cioso da criatura e não deixa que nenhuma seja acesa,
Sem que um pouco de impureza se consuma:
A sua, ou aquela que a cerca.
E não há dúvida que a desgraça deste tempo é grande.
Eles não têm pai. Olham, e não sabem do Rei, e não sabem do Papa.
Eis meu corpo em ação no lugar da cristandade que se dissolve!
Poderoso é o sofrimento quando é tão voluntário quanto o pecado!
Viste-me beijar o leproso, ó Mara? Ah! a taça da dor é profunda;
Quem uma vez pôs-lhe a boca, não pode mais afastá-la!
MARA — Toma então a minha contigo!
VIOLAINE — Pronto.
MARA — Violaine, se existe ainda algo de vivo e que seja minha irmã sob esse véu e esse vulto defunto,
Lembra-te que fomos crianças junto, e tem pena de mim!
VIOLAINE — Fala, irmã! Confia em mim!
Dize tudo!
MARA — Violaine, eu sou uma desgraçada, e minha dor é bem maior que a tua!
VIOLAINE — Maior, ó Mara, maior?
MARA, num grande grito, abrindo o manto e erguendo nas mãos um cadáver de criança
— Olha! Pega!
VIOLAINE — O que é isto?
MARA — Pega. Toma. Eu te dou. Eu te entrego.
Põe-lhe o cadáver nos braços.
VIOLAINE — Ah, eu sinto um corpinho duro, um rostinho gelado!
MARA — Ai, Violaine! Minha filha! Minha filhinha!
O seu rostinho tão macio, o seu corpinho tão quente!
VIOLAINE, em voz baixa — Morta, Mara?
MARA — É tua. É tua.
VIOLAINE — Paz, ó Mara!
MARA — Eles queriam arrancá-la; mas eu, eu não deixei, e fugi escondido com ela.
Mas tu, Violaine, podes pegá-la! É tua.
VIOLAINE — Que queres, Mara, que eu faça?
MARA — Que quero que faças? Não escutas então?
Eu te afirmo que ela está morta! Que ela morreu!
VIOLAINE — A sua alma vive em Deus.
Segue o Cordeiro. Está no céu com as pequenas virgens.
MARA — Mas está morta para mim!
VIOLAINE — Tu me dás, ó Mara, o seu corpo.
Dá o resto a Deus!
MARA — Não! Não! Oh, não! Tu não me enganarás com tuas palavras de beata!
Não, eu não me deixarei aplacar.
Esse leite que me queima o seio grita para o céu como o sangue de Abel!
Terei eu cinquenta filhos a arrancar do meu corpo? Terei eu cinquenta almas para arrancar da minha?
Sabes tu o que é rasgar-se em duas e lançar fora esse pequeno ser que grita?
A parteira disse que não darei mais à luz.
E ainda que eu tivesse cem filhos, nenhum seria a minha pequena Aubaine.
VIOLAINE — Aceita, Mara! Aceita!
MARA — Tu sabes que eu tenho cabeça dura.
Eu sou aquela que não cede e não aceita nada.
VIOLAINE — Pobre irmã!
MARA — Violaine, é tão doce! Dói tanto essa boquinha cruel que nos morde por dentro!
VIOLAINE, acariciando o rosto — Como seu rostinho está frio!
MARA, em voz baixa — Ele ainda não sabe de nada!
VIOLAINE, do mesmo modo — Ele não estava em casa?
MARA — Ele fora a Rheims, para vender o trigo. Ela morreu de repente, em duas horas.
VIOLAINE — Com quem se parecia ela?
MARA — Com ele, Violaine. Ela não é só minha. É dele também. Só os olhos são meus.
VIOLAINE — Pobre Jacques!
MARA — Não foi para ouvir-te dizer: “Pobre Jacques!”. Não foi para isso que vim!
VIOLAINE — Que queres então de mim?
MARA — Violaine, queres saber de uma coisa? Sabes o que é uma alma que se dana,
De livre vontade, pelo tempo eterno?
Sabes o que vai pelo coração que blasfema por gosto?
Um diabo cantava dentro de mim enquanto vinha correndo.
Queres saber sua canção?
VIOLAINE — Cala-te!
MARA — Dá-me então a filha que te dei!
VIOLAINE — Tu só me deste um cadáver.
MARA — Mas tu, dá-me o cadáver vivo!
VIOLAINE — Mara! Como tens a coragem de dizer tal coisa!
MARA — Não admito que a minha filha tenha morrido!
VIOLAINE — Estará acaso em meu poder ressuscitar os mortos?
MARA — Não sei; só tenho a ti para socorrer-me.
VIOLAINE — Estará acaso em meu poder ressuscitar os mortos como Deus?
MARA — Para que serve então?
VIOLAINE — Para sofrer e suplicar!
MARA — Mas de que serve sofrer e suplicar se não me devolves a filha?
VIOLAINE — Deus o sabe, e basta-lhe que o sirva.
MARA — Mas eu, eu sou surda e não escuto!
E clamo por ti da profundeza em que estou! Violaine! Violaine!
Dá-me a filha que eu te dei! Se é preciso, eu cedo, eu me humilho!
Tem piedade de mim!
Tem piedade de mim, Violaine, e dá-me a filha que tomaste!
VIOLAINE — Só aquele que a tomou a pode dar de novo!
MARA — Dá-me, então. Ah, eu sei que tudo é tua culpa!
VIOLAINE — Culpa minha?
MARA — Não, não!
Minha, perdoa-me! Mas dá-me a minha filha, minha irmã!
VIOLAINE — Tu bem vês que morreu.
MARA — Mentira! Não morreu coisa alguma. Ah! coração de ovelha! Ah! se eu tivesse como tu acesso a Deus!
Ele não me arrancaria os filhos desse jeito!
VIOLAINE — Pede-me para criar de novo o céu e a terra!
MARA — Mas está escrito que podes soprar a montanha e arremessá-la ao mar.
VIOLAINE — Poderia, se fosse uma santa.
MARA — É preciso ser uma santa, quando uma infeliz suplica.
VIOLAINE — Ó tentação suprema!
Eu juro, eu declaro, eu protesto diante de Deus que eu não sou uma santa!
MARA — Violaine, dá-me a minha filha!
VIOLAINE — Por que não me deixas em paz?
Por que vens assim me atormentar no túmulo?
Será que valho alguma coisa? Será que disponho de Deus? Será que sou como ele?
Tu me pedes para julgar o próprio Deus.
MARA — Eu só peço minha filha.
Pausa.
VIOLAINE — levantando o dedo — Escuta.
Sinos ao longe, quase imperceptíveis.
MARA — Não ouço nada.
VIOLAINE — São os sinos de Natal, os sinos que anunciam a missa, a missa da meia-noite!
Ó Mara, um menino nasceu para nós, nasceu para nós uma criancinha...
MARA — Dá-me, então, a minha!
Trombetas morrendo ao longe.
VIOLAINE — Que é isto?
MARA — É o Rei que vai a Rheims. Não ouviste falar dessa estrada que os camponeses abriram em plena floresta?
(Que boa lenha não tiraram dali!)
É uma pastorinha que o conduz a Rheims, através da França,
Para o fazer sagrar.
VIOLAINE — Louvado seja Deus que fez tão grandes coisas!
Os sinos de novo, muito nítidos.
MARA — Como os sinos tocam o Gloria! O vento sopra para cá. Há três aldeias tocando ao mesmo tempo!
VIOLAINE — Rezemos com todo o universo!
Não sentes frio, Mara?
MARA — Só tenho frio por dentro.
VIOLAINE — Rezemos. Há quanto tempo não celebramos juntas o Natal!
Não tenhas medo. Tomei comigo a tua dor. Olha! O que me deste está escondido comigo no meu peito!
Não chores! Não é hora de chorar, quando nasceu a salvação de todos.
Sinos ao longe, menos distintos.
MARA — Já não neva mais e as estrelas estão brilhando.
VIOLAINE — Olha! Vês este livro?
MARA — Vejo.
VIOLAINE — Toma-o, por favor, e lê-me o Ofício de Natal, a primeira lição de cada um dos Noturnos.
MARA — Para quem lerei?
VIOLAINE — Para Deus. Para os Anjos.
Para a terra inteira.
E eu entro na minha noite, dentro da noite, para escutar também.
Violaine desceu do estrado carregando a criança. Enfurna-se no fundo da “cela” improvisada na parede do edifício em ruínas que lhe serve de abrigo. Mara sobe ao estrado, instala-se diante da estante, onde começa a ler. Lê em “recto tono” as primeiras linhas da profecia. Pouco a pouco, sua voz vai baixando enquanto se fazem ouvir na floresta cantos divinos.
MARA, lendo:
PROFECIA DE ISAÍAS
No primeiro tempo foi aliviada a terra de Zabulão e a terra de Neftali, e no último foi agravada a estrada do mara, além do Jordão e da Galileia das Nações. O povo que caminhava nas trevas viu uma grande luz; os que habitavam na região, na sombra da morte, uma luz nasceu para eles!
Silêncio. Cantos.
MARA, retomando a leitura:
SERMÃO DO PAPA SÃO LEÃO
Nosso Salvador, bem amados, hoje nasceu: alegremo-nos. Não há lugar para a tristeza quando nasce a vida; a qual, vencido o temor da morte, põe em todos a alegria da eternidade prometida. Não há ninguém que não tenha nessa alegria uma parte.
Soar de trombetas prolongado e próximo. Grandes gritos através da floresta.
MARA — O Rei! O Rei da França!
De novo, uma vez ainda o toque das trombetas indizivelmente dilacerante, solene e triunfal.
MARA, em voz baixa — O Rei da França que vai a Rheims!
Silêncio.
Violaine!
Ela grita com toda a força.
Tu me ouves, Violaine?
Silêncio. — Recomeça a leitura.
...Que o pecador se alegre, pois é chamado ao perdão. Espere o gentio, convidado à vida! Pois o Filho de Deus, na plenitude do tempo que o insondável conselho dispusera...
Silêncio. Anjos cantam.
MARA — Violaine, eu não sou digna de ler esse livro!
Violaine, eu sei que eu sou muito ruim, e sinto remorso: queria ser diferente.
Silêncio.
MARA, com esforço, retoma a leitura em voz trêmula:
LEITURA DO SANTO EVANGELHO SEGUNDO SÃO LUCAS
Fica de pé.
Naquele tempo foi decretado por César Augusto que todo o universo fosse recenseado. E o resto.
HOMILIA DO PAPA SÃO GREGÓRIO
Como, pela graça de Deus, devemos hoje celebrar três vezes a solenidade da missa...
Silêncio ainda.
O livro treme violentamente nas mãos de Mara. Acaba por deixá-lo cair e permanece de pé ao luar, numa atitude de pânico. O dia começa a nascer.
VIOLAINE, bruscamente, num grito abafado
— Ah!
Mara se dirige para a “cela”. Entra, e volta de costas, arrastando Violaine consigo, puxando-a até à frente da cena. Aí, vendo a criança mexer, atira-se para trás.
MARA — Violaine, que é isto que mexe em ti? Que é isto que mexe em ti? Dize o que foi que mexeu!
VIOLAINE — Paz, ó Mara! Eis o dia de Natal onde toda alegria nasceu.
MARA — Que alegria pode haver para mim senão que minha filha viva!
VIOLAINE — Para nós, também, uma criança nasceu!
MARA — Ela está mexendo! Está mexendo! Mexendo! Ó meu Deus, eu vejo que mexe de novo!
Em nome de Deus, Violaine, fala, fala!
VIOLAINE — “Eis que eu vos anuncio uma grande alegria...”
Pobre irmã! Está chorando. Sofreu demais também.
Pega, Mara! Queres deixá-la ainda comigo?
Estende a Mara a criança.
MARA — Vive!
Mara atira-se sobre a criança e arranca-a violentamente da irmã.
VIOLAINE sobe ao estrado, de mãos juntas, e exclama: Glória a Deus!
MARA — Vive!
VIOLAINE — Paz aos homens na terra!
MARA — Vive! vive!
VIOLAINE — Vive, e nós vivemos.
E a face do Pai aparece sobre a terra renascida e consolada.
MARA — Minha filha vive!
VIOLAINE, levantando o dedo — Escuta!
Silêncio.
Ouço tocar o Angelus em Monsanvierge.
Faz o Sinal da Cruz e reza. — A criança acorda.
MARA, muito baixinho — Sou eu, Aubaine.
Tu me conheces?
A criança se agita e geme.
Que é, meu bem? Ti, ti, ti, ti, ti, meu tesouro!
A criança abre os braços, olha a mãe e começa a chorar. Mara a considera atentamente.
Violaine!
Que quer dizer isto? Seus olhos eram negros.
Ei-los agora azuis como os teus!
Silêncio.
Ah! Que gota é essa que eu vejo, de leite, em sua boca?
Ao longe, bem ao longe, os sinos de Monsanvierge.
(extraído de: CLAUDEL, Paul. O anúncio feito a Maria: versão definitiva para a cena. Tradução de Dom Marcos Barbosa, O.S.B. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1968. terceiro ato, p. 99-131)